«(…) A prisão dos lentes do Colégio
das Artes ocorreu dois anos depois, em Agosto de 1550. Foram presos, como atrás disse, o escocês Jorge Buchanan e os
portugueses Diogo Teive e João Costa, os dois primeiros em Coimbra e o último
em Lisboa, onde se encontrava a tratar de assuntos do Colégio, de que era então
principal. As acusações não eram desmandos morais, ao contrário do que já
alguém escreveu, mas faltas como confessarem-se pouco, comerem carne em dias
proibidos, desencorajarem os discípulos de se meterem a frades, afirmarem que
Deus se deve servir por amor e não por temor, dizerem que furtar uma pena de
escrever é tão grave como roubar trinta cruzados e um ou outro comentário
imprudente, feito nas aulas ou em conversas de amigos, sobre pontos de doutrina
religiosa. Talvez por influência duma carta de Martin Azpilcueta à rainha dona Catarina
que era espanhola como ele, e muito o respeitava, os três professores foram
relativamente bem tratados durante a sua curta prisão, e Buchanan talvez melhor
que os outros. Mandado recolher a um convento de frades Lóios de Lisboa, os
frades deram-lhe como penitência redigir os Salmos de David, em versos clássicos
latinos. Ε Buchanan saiu-se do encargo, escrevendo uma das suas obras primas de
grande poeta, admirado em toda a Europa de então.
A actividade editorial, sobretudo
em latim, de Coimbra entre 1548 e 1551, é notável. A poesia
latina estava na moda e Buchanan, por exemplo, tanto pode escrever um epigrama
a recomendar uma relectio de Azpilcueta, como dedicar um pequeno poema
em louvor de João III, logo a abrir o Commentarius de Rebus in índia apud
Dium gestis, anno Salutis nostrae MDXLVI. Iacobo Tevio Lusitano Autore.
Conimbricae, MDXLVIII, ou seja, a Crónica
dos feitos praticados na índia, em Diu, no ano de 1546, da autoria de Diogo de
Teive português. Coimbra, 1548. O outro epigrama em louvor do livro de Teive
é de João Costa. O livro trata do 2.º cerco de Diu, em 1546. Sabe-se que Buchanan, uma vez em
liberdade, e já fora de Portugal, mimoseou João III com outro epigrama In Polyonymum, Contra o de muitos nomes, este nada laudatório do soberano
de Portugal. Traduzi ambos no meu livro Latim Renascentista em Portugal.
Tem-se escrito que esta prisão
dos três lentes do colégio e, um ano mais tarde, a de um quarto lente, Marcial
Gouveia, desmantelou o Colégio das Artes. Não é bem assim. Havia professores
competentes na facção adversa aos bordaleses,
nome dado a André Gouveia e seus companheiros. Eram os chamados parisienses, inimigos de André e
partidários de seu tio, o principal de Santa Bárbara, Diogo Gouveia,
Sénior. Por outro lado, fora das duas parcialidades, estavam humanistas de
grande gabarito, como André Resende e Inácio Morais que vieram ensinar no Colégio
das Artes, chamados por João III. Todavia, a prisão dos lentes afectou o clima
de confiança em que até aí se trabalhava no Colégio das Artes, e a partida, em
anos sucessivos, de alguns dos professores estrangeiros como Nicolau Grouchy,
Elias Vinet Guilherme Guérente, facilitou a posterior entrega do Colégio à
Companhia de Jesus.
Nestes anos em que Anchieta
permaneceu em Coimbra, por aí passou uma pléiade notável de poetas latinos,
entre outros, George Buchanan, Diogo Teive, João Costa, André Resende, Inácio
Morais, Marcial Gouveia, o grande jurista Manuel Costa, etc. Destes, pelo menos
Diogo Teive foi professor de Anchieta que, mais tarde, dará provas de uma
excepcional aptidão para a poesia latina, ao compor não apenas dois longos
poemas em ritmo dactílico mas numerosas poesias em ritmos líricos, um género
que só estava ao alcance dos melhores cultores da poesia latina. Compor versos
em latim clássico era parte da formação cultural dum humanista do Renascimento.
Assim, este exercício escolar veio a ser praticado por versejadores correctos
mas sem inspiração. Não é esse o caso de José Anchieta, cuja poesia em latim
renascentista, o proclama um dos melhores poetas do seu tempo». In
Américo Costa Ramalho, José de Anchieta em Coimbra, Revista Humanitas, volume
XLIX, 1997, Universidade de Coimbra.
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