Príncipe
Umanizzato do Renascimento. Projecto educativo moderno
(…) Estas orações de
obediência e as celebrações públicas de júbilo pelos grandiosos feitos
lusos, com festas, procissões, missas solenes e pregações, bem como a
divulgação pela imprensa romana das cartas da chancelaria portuguesa que davam
notícia das conquistas ao infiel, em círculos mais restritos, contribuem para a
criação de um mundo de fantasia, de utopia, que se reflecte nas letras e nas
artes, de muitos autores nacionais, mas também estrangeiros, como Egidio
Viterbo, Giovanni Baptista Mantuano, Francesco Albertini, Albert Dürer, além de
Thomas More. Esta aura mítica que se criou em torno das façanhas dos
portugueses, nas mais remotas paragens do globo, levou Egídio Viterbo a
afirmar, em 1507, num sermão
proferido em Roma nas festividades que Júlio II promovera para celebrar as
nossas vitórias no Oriente, que nada desejava mais no mundo do que ser
Português (sobre o discurso de Egidio Viterbo e sua importância, pela repercussão
que teve nos temas que figuram na abóbada da Capela Sixtina e na Stanza
della Segnatura de Rafael; dedica um capítulo inteiro (capítulo X) ao
milenarismo português, sendo cerca de uma dezena de páginas sobre o sonho de Manuel, o venturoso, que
projectava uma espécie de império universal e messiânico, sob a égide de
Portugal). Neste mesmo ano, o carmelita Giovanni Baptista Mantuano faz o
elogio rasgado das viagens marítimas dos portugueses, louva os seus progressos
na ciência náutica, o seu papel na expansão e consolidação da Fé. Gil Vicente,
no Auto da Fama, escrito em 1510,
chama a Manuel I alferes da fé / e rei do
mar, Fala da Fama em diálogo com o
Italiano, in Gil Vicente).
Este sentimento contagiante de
entusiasmo pelas nossas Descobertas, pelo desconhecido, caldeado com o
proselitismo cristão, que crê no estabelecimento de uma respublica
christiana sob a égide de Portugal, aflora no imaginário dos mais diversos
autores, nos anos subsequentes à grande aventura marítima do Gama. É
esse mesmo sentimento o grande móbil do entusiasmo descritivo que percorre a
literatura nacional, em latim e em vulgar. No tempo de Manuel I, chega-se ao
epílogo dessa longa história de descobrir. Vive-se o fausto e o luxo da corte
mais prestigiada da Europa, que sustenta a ociosidade e a mania nobiliárquica
dos cortesãos, numa Lisboa exótica e cosmopolita (as fontes de riqueza, que
sustentavam canais de consumo e não de investimento, o abandono da agricultura,
a expulsão dos judeus e o seu massacre em Lisboa, em 1506, iriam contribuir a
passos largos para a descapitalização interna, verificada nos reinados de João
III, que teve de abandonar as praças de África, e, de forma dramática, no
reinado do rei Sebastião I. O tratado De regis institutione et disciplina de
Jerónimo Osório (1572) denuncia, de forma insistente, esta realidade). Os Jerónimos
e a Torre de Belém tornam-se símbolos da grandeza do império e impõem um
estilo arquitectónico que recebeu a designação de manuelino. A corte é animada
nos seus serões pelo teatro de Gil Vicente, que a rainha dona Leonor,
viúva de João II, protegia, pela poesia palaciana, pela música, em que Manuel I
era aficcionado e o jovem da corte Damião Góis era perito (conhecido é
o apreço de Erasmo pela música de Damião Góis e o deleite que ela lhe trouxe e
à família erasmiana, nos anos em que
o humanista luso foi seu hóspede em Lovaina). Até aos moços negros do paço
mandava o rei ensinar a Gramática.
Era
esta a realidade em que se movia a consciência crítica e racional, o espírito
empreendedor e magnificente de Diogo Sousa. Encontrando-se em
Itália, na embaixada ao papa de 1505,
ao regressar a Portugal, faz a entrada solene na cidade de Braga, sede do seu
arcebispado, em 22 de Novembro deste mesmo ano. Estas festas, na sua
espectacularidade, na sua pompa, são, pelo seu simbolismo, uma expressiva
afirmação do poder espiritual da Igreja de Roma, em tempos de Savonarola
e de prenúncios da Reforma, e uma oportunidade única de o novo antístite se
apresentar à arquidiocese e, sobretudo, de dimensionar o seu poder de Senhor e
arcebispo, como competia a um verdadeiro princeps
do Renascimento, já que o arcebispado era simultaneamente um potentado político
(a importância das festas, das entradas solenes, no Renascimento, à maneira dos
triunfos romanos, reveste-se de um simbolismo político, social e também religioso;
entre nós, estavam ainda bem presentes, na memória de todos, a entrada da
princesa dona Isabel, esposa do príncipe Afonso, em Évora, e a de dona Maria,
esposa de Manuel I, em Santarém, nas quais Cataldo profere, ou
simplesmente compõe, porque, no segundo caso, não chegou a ser proferida, a oratio
laudatória)». In Nair de Nazaré Castro Soares, O Arcebispo de
Braga, Diogo Sousa, Principe Umanizzato do Renascimento. O seu projecto
educativo moderno, Revista Humanitas
nº LXIII, Universidade de Coimbra, 2011, ISSN 0871-1569.
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