Os Filhos da Luz. Baviera, 1775
«(…) Conseguiu dar dois
passos antes que o animalzinho se precavesse do perigo que avançava em sua direcção.
Sem dúvida, tinha contemplado como sua mãe ficara presa e como tinha perdido a
vida no curso de um ritual que nunca tivera antes a oportunidade de contemplar.
Agora, o medo e o espanto o impediram de reagir a tempo. No entanto, de
qualquer forma conseguiu mexer-se. Deu um salto instintivo à direita para
evitar aquelas manoplas que se lançaram sobre ele e depois, ainda presa do
estupor, começou a correr. Foi uma corrida inexperiente, desajeitada e lenta.
Típica de alguém que até aquele momento não sabia o que era ter que se salvar
de um agressor. Impelido mais pelo susto do que por um medo suficiente para activar
seu instinto de autopreservação, o filhote de lebre tratou de se esconder entre
uns arbustos. O caçador se lançou sobre os arbustos convencido de que pegaria
aquele animalzinho. Estava enganado. A sombra daquela massa se precipitando
sobre ele acabou tirando do estupor aquele infeliz filhote de lebre. Deu um
novo pulinho e, agora sim, começou a correr para se afastar daquele ser que ele
não tinha visto antes mas que parecia representar um verdadeiro perigo.
Com as orelhas
transformadas em antenas que o avisavam da proximidade do seu inimigo, o
filhote de lebre descreveu uma corrida em ziguezague que não o afastou da
cilada persistente, mas pelo menos impediu que ela se transformasse numa
realidade letal. Ofegante, o caçador procurava se aproximar do animalzinho e
prendê-lo entre o vazio ameaçador que suas mãos formavam, mas, repetidas vezes,
aquele ser miúdo evitou a tenaz. Com o instinto que só a experiência
proporciona, compreendeu que a sua única oportunidade de encurtar distâncias e
alcançar o animalzinho era enganá-lo. Deu uma passada com a perna direita que
assustou o filhote de lebre e fez com que saltasse para a esquerda e, justo
nesse momento, precipitou-se sobre ele. Ele lhe escapou por duas míseras polegadas,
mas era óbvio que o caçador tinha encontrado o método que lhe permitiria sair
com sucesso daquela missão. Bem, era só uma questão de repetir a jogada no
momento exacto em que o animalzinho estivesse suficientemente próximo.
Não fez isso. Enquanto o
filhote de lebre corria para se pôr a salvo à maior distância possível, o
caçador vislumbrou algo que distraiu sua atenção. No início, só chegou até seu
corpo uma soma de sensações fortes e absorventes. Um cheiro penetrante de carne
em decomposição, o zumbido irrequieto do que pareciam ser centenas de moscas,
os raios de sol descendo entrecortados sobre um tronco de árvore para se atirar
depois pela casca e, revolta, rutilante e avermelhada, uma cabeleira que só podia
pertencer a um ser humano. Ele parou, inalou uma golfada de ar, passou a mão
pela testa suarenta e, por alguns instantes, procurou compreender o que
significava tudo aquilo que se oferecia, agressivo e pujante, aos seus
sentidos. Não conseguiu àquela distância e, tendo já relaxado a perseguição ao
filhote de lebre, deu alguns passos na direcção da inesperada descoberta. O
fedor de podridão arranhou suas fossas nasais, mas não o deteve. Espantou com
furiosos golpes de mão o bando de moscas e conseguiu distinguir uma imagem diferente
de qualquer outra que já tinha se oferecido ante as suas pupilas.
Tratava-se de um homem
jovem, sem dúvida. Era até possível que não tivesse ultrapassado a casa dos
vinte anos. No entanto, agora não passava de um despojo fétido e coberto de
insectos verde-azulados. O rosto parecia destruído, esmigalhado, esvaído, como
se tivessem tentado desmanchá-lo até torná-lo irreconhecível. No entanto, o caçador
disse a si mesmo que o mais certo era que aquela terrível abrasão se devesse à acção
combinada das feras e das moscas. Quanto ao resto do corpo... As meias estavam destruídas,
mas enquanto o pé direito conservava um sapato, no esquerdo os dedos, avermelhados
e roídos, do morto sobressaíam no meio do tecido. As calças, sujas e cobertas
de lama, estavam espantosamente rasgadas na altura das virilhas, embora os rasgões
se encontrassem quase totalmente cobertos por espessas nuvens de moscas que se
movimentavam febrilmente em busca de uma presa que o caçador não sabia ao certo
qual era. Finalmente, as folhas pareciam ter ajudado a cobrir pudicamente as
mãos, os braços e o peito do defunto. Por um instante, contemplou aquele ser
humano, agora à mercê de alguns predadores que, por serem menores, não eram
mais compassivos ou menos eficazes do que ele. Então, de forma inesperada, sem
qualquer aviso prévio, sentiu um enjoo cálido e incontrolável que subia desde o
ventre. Teve, primeiro, um espasmo seco que lhe arrancou algumas lágrimas e
impregnou sua testa de suor. Titubeante, aproximou-se de uma árvore em que se
apoiou subitamente mareado. Antes que tivesse apoiado os dedos da mão sobre o
tronco, começou a vomitar, tomado por irresistíveis espasmos. Podia-se dizer
que, ao expulsar todo o conteúdo de seus espasmos, se abrisse diante dele a possibilidade
de reter a vida.
Os Filhos da Luz. Baviera, 1787
Wilhelm Koch passou a mão pelo queixo. Sentiu então um pequeno tufo de pêlos
mal barbeados, localizado duas ou três polegadas abaixo da têmpora. Aqueles hóspedes
inesperados e, sobretudo, indesejados arrancaram dele um mal-estar que saltitou
de seus lábios. Por alguma razão que não era fácil de descobrir, as regras familiares,
a educação com os jesuítas, um motivo cósmico etc., não podia tolerar a desordem
nem a falta de harmonia. Era uma atitude extensiva tanto ao traçado de uma rua
quanto à limpeza de suas camisas, a uma operação aritmética bem resolvida ou à luta
implacável contra o crime. Não suportava nada que parecesse dissonante, torto,
feio ou ruim. Talvez por isso poderia ter sido arquitecto, músico ou
matemático. Certamente por isso era um polícia. Ele era, e dos melhores.
Dificilmente se poderia encontrar, em toda a Baviera, um outro igual. Ao longo
de vinte anos de serviço, tudo tinha corrido bem, ou seja, de maneira ordenada.
Roubos, fraudes, violações, assassinatos..., raras foram as transgressões da
lei que não soubera enfrentar com sucesso. E tudo, absolutamente tudo, era
devido ao seu método. Na opinião de Koch, a questão limitava-se a encontrar o
ponto exacto em que a harmonia que governava o cosmos era quebrada. Da mesma
forma como uma tubulação quebrada só pode ser consertada quando se descobre o
lugar onde ocorre o vazamento, o crime exigia que se detectasse a partir de
quando a ordem social foi rompida». In César Vidal, O Crime dos Illuminati, 1958,
tradução de António Borges, Relume Dumará, Ediouro Publicações S.A., 2006, ISBN
857-316-6491-3.
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