Os Filhos da Luz. Paris, 21 de
Janeiro de 1793
«(…) Um dos carrascos,
alto, corpulento, com aparência brutal, aproximou-se da cesta e, agarrando a
cabeça pelos cabelos, levantou-a para que a multidão a visse. Durante alguns
momentos, deixou que o sangue jorrasse abundante do pedaço de corpo já sem
vida. No entanto, aquela exibição de força triunfal não pareceu comover os presentes,
talvez impressionados demais com o que tinha acontecido durante os minutos anteriores.
Foi então que o carrasco jogou a cabeça no cesto com um gesto depreciativo e de
uma só puxada apanhou a casaca branca que estava caída no chão do cadafalso. Agitou-a
por um instante no ar como se fosse uma bandeirola e depois a atirou com violência
sobre a multidão. Por um breve instante, a peça de roupa descreveu um voo curto
que foi abortado por um oceano de mãos que se lançaram para dela se apoderar. Entre
rugidos e gritos, uivos e clamores, aquela brancura desapareceu completamente
no meio da massa. Como a vida daquele homem que tinha acabado de ser
guilhotinado, Luís XVI, o cidadão Capeto, um monarca de trinta e
oito anos com que se encerravam oito séculos de dinastia bourbónica na França.
Nada restava daquela dinastia que um dia tinha dominado metade da Europa. Num
sentido nada metafórico, tinha sido cortada de um golpe só. Enquanto assim
pensava, Karl observou como o terceiro sacerdote, o que não parecia francês, o
que tinha tentado consolar o rei, descia agora do cadafalso, ultrapassava a
primeira linha de soldados e se perdia no meio da multidão. Parecia atordoado,
exausto, submetido a um impacto que não podia suportar. Ninguém, absolutamente
ninguém, prestou atenção nele. Karl enfiou a mão no bolso e tirou do colete
desbotado um relógio dourado. Eram pouco mais de dez e quinze. E então, exactamente
quando afastou o olhar da esfera branca, ele o viu. Era ele, sim, era ele. Sem
nenhuma sombra de dúvida. Talvez estivesse um pouco mais magro, embora não
muito, e seus cabelos estivessem mais ralos e grisalhos, mas era ele. E o
olhava. Olhava-o com aqueles olhos inquisitivos que pretendiam, e quase sempre
conseguiam, esconder o que corria pelo fundo de seu coração.
O coração de Karl começou
a bater com mais força do que a que os tamborileiros tinham empregado para
bater nos instrumentos. Sabia que o encontraria ali. Sempre soubera disso. Não
poderia ser de outra maneira. E agora, enfim, encontrava-o. Ali, no mesmo lugar
onde acabava de desaparecer a monarquia mais importante da Europa. Apertou os
punhos, respirou e tentou abrir caminho até o lugar onde ele se encontrava. Deu
dois, três, quatro empurrões para alcançá-lo. Mas, de repente, desapareceu.
Angustiado, movimentou a cabeça para um lado e para o outro, até que seu
pescoço doeu, enquanto procurava encontrá-lo. Empenhava-se nisso quando uma das
abas da casaca ficou agarrada entre duas matronas que conversavam animadamente,
ainda que sem muito critério, sobre a execução do Capeto. Conseguiu
recuperá-la, suja e amarrotada, de um puxão, e, seguindo um impulso instintivo,
tentou-lhe devolver uma elegância que talvez tivesse perdido para sempre. Foi
então, quando levantou a vista, com a desolação embargando seu rosto, que ele o
viu novamente. De maneira incrível, tinha conseguido livrar-se daquele imenso
mar de corpos malcheirosos, e se colocar na outra extremidade da praça abarrotada.
Mas como ele tinha conseguido isso? Karl cravava os cotovelos, os punhos, os
antebraços em qualquer ser vivo que se interpusesse em seu caminho. Não, agora
não podia tornar a escapar. Tinha que agarrá-lo.
O fugitivo, porque ele
era isso, de facto, livrou-se daquele pesado espartilho humano entretecido com
milhares de corpos quando Karl estava a quase duzentos passos dele. Arfando,
suando por todos os poros, reprimindo as maldições que lutavam para brotar de
seus lábios, contemplou desesperado como a sua presa inatingível apertava o
passo e, quando chegou a uma esquina, começava a correr. Demorou ainda alguns
minutos para se livrar daquela maré, em que não eram poucos os que já se
vangloriavam de contar com um retalho da casaca branca do Capeto. Quando
conseguiu, começou a correr, embora estivesse consciente de que não tinha rumo
certo nem sabia em que direcção seguir. Não poderia dizer o tempo que durou aquela
corrida, mas, por fim, o esgotamento o obrigou a encerrá-la e Karl teve que se apoiar
contra o muro gelado de uma rua desconhecida tossindo violentamente e tentando
recuperar o ritmo da respiração. Inalou gulosamente o vento frio da manhã, como
se disso dependesse a sua vida, como se num instante só pudesse conduzir aquele
oxigénio indispensável até o último lugar de seus pulmões, como se lhe fosse
dado recuperar a juventude, o vigor e a alegria gastos naquele incidente longo,
o mais longo de sua existência. Um incidente que tinha começado anos atrás, em
outro lugar e em outra época.
Os Filhos da Luz. Baviera, 1775
Como é bonita, disse a si mesmo enquanto calculava na mão esquerda o
peso do animal. Sim, e como é gorda. E olhe que era raro neste tipo de animal.
Mas a lebre..., bem, a lebre era uma delícia. Pele suave, cor deliciosa e
aparência opulenta. Não deveria ter sofrido muito. Tinha-se emaranhado no laço
na altura do pescoço e pelejando para se libertar só tinha conseguido se
estrangular mais rapidamente. Acontecia de vez em quando com estes
animaizinhos. Dava um pouco de pena, mas precisava comer. Balançou a cabeça
como se quisesse arrancar dela qualquer vislumbre de compaixão e, com um gesto
rápido, soltou o animal da armadilha que tinha lhe arrancado a vida, e o jogou
no bornal. Foi nesse momento que o viu. Foi apenas um instante e, com toda a
certeza, não teria percebido nada se não tivesse sacudido o cangote justo nesse
mesmo momento em que seu olhar se entrecruzou com o que saía de uns olhinhos
miúdos, redondos e pretos, incrustados no rosto assustado e trêmulo de um
filhote de coelho. Com gesto rápido, o caçador ficou de pé de um salto e se
precipitou sobre a presa inesperada. Sem dúvida, era uma cria da lebre enorme
que tinha acabado de apanhar. Tinha que ficar com ela». In César Vidal, O Crime dos
Illuminati, 1958, tradução de António Borges, Relume Dumará, Ediouro
Publicações S.A., 2006, ISBN 857-316-6491-3.
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