A
Personagem
«Começou
a ler o livro num sábado de manhã. Um amigo seu tinha-lho recomendado.
Belíssimo, dissera, há uma personagem feminina comovente, linda, tão misteriosa
que é uma presença quase ténue, no livro, um fio de existência feito só de
indícios, e de súbito reparamos que a personagem se instalou em nós, no
coração, no ar que respiramos. Como se tivesse saltado das páginas do livro,
literalmente, repetia o amigo, como se tivesse saído do livro e o seu destino
viesse fundir-se ao nosso quotidiano. Ele confiava na opinião daquele amigo.
Gostava de passar os fins-de-semana de Inverno em casa, estirado no sofá da
sala, lendo. Por isso sexta-feira à tarde foi comprar o livro antevendo com
volúpia todo o desenrolar do processo: sair da livraria sentindo o livro nas
mãos (era absolutamente impossível pedir emprestado um livro quando se tratava
de saboreá-lo), desfazer o embrulho em casa, devagar, cheirar o livro (adorava
o cheiro dos livros novos), mirar a capa dum lado e do outro, ler as badanas,
deixar o livro pousado em cima da mesa da sala enquanto ia à cozinha preparar e
comer o seu jantar (ele vivia sozinho); voltar à sala, olhar o livro de longe,
aguçando o desejo; quase ceder à tentação de começar imediatamente a ler;
resistir, aguçar ainda mais o desejo, decidir não, hoje à noite vou sair,
amanhã sim. E o sábado chegou com uma cor amarela, cor da alegria, apesar de estar
um dia chuvoso.
Começou
a ler o livro sábado de manhã. Leu as primeiras vinte páginas com avidez. Sim
aí estava ela, a tal comovente e ténue personagem feminina, fio secreto de todo
o enredo. Era uma obra de arte, finamente cinzelada nas entrelinhas, entrevista,
prometida. Prometido o encontro, leu mais vinte páginas, a inevitável
desvelação não se anunciava mais próxima. A mulher entrara na sua pele como a
mais insidiosa das amantes, mas permanecia feita só de cecantes indícios,
ameaçadoramente esfingica. As páginas seguintes foram-se tomando
progressivamente torturantes, cansativas, frustrantes. Corpo feito de entrelinhas,
a mulher nada oferecia, revelava-se, recusava-se. Um jogo, infindo de
coqueteria, um baixar de olhos, de pálpebras. Nada acontecera, e já a nostalgia
o habitava: ela passara, e não viria. Deixou o livro na página oitenta, a meio
da tarde de sábado, e foi ao cinema. Escolheu um filme violento, vingativo.
Saiu indisposto com tantas imagens óbvias, achando o mundo estúpido, azedo consigo
próprio. Telefonou a dois ou três amigos, jantou com eles. Riram e falaram de
mulheres, um pouco de futebol, um pouco de política. Separaram-se polidamente,
prometendo próximos e entretidos encontros. Na despedida ele pensou: se
fôssemos homens da anterior geração, agora iríamos às pu…, juntos, mas nós nem
isso sabemos fazer.
Depois
envergonhou-se de tal pensamento, honestamente achava que mais valia encobrir
tristezas com desconsolos polidos do que com as alarvidades antigas. Recolheu a
casa, ouviu um pouco de música, deitou-se cedo. Pensou que se zangara com a
namorada há um mês, que ainda não arranjara outra, que tinha de resolver o
assunto, e adormeceu. E foi então que a viu, completa. Ela estava à sua frente,
transparente e nua, livre das revelações textuais. Depois adensou-se seu corpo,
depois vieram as vestes. Mas ela sorria sempre, estendia-lhe os braços e
dizia-lhe: completa o meu destino.
Acordou
na manhã seguinte com sensação de enigma. Recordou vagamente o sonho, encolheu
os ombros. Não há dúvida de que ela estava bem descrita, no princípio, disse
para si próprio, para assim entrar, tão perfeita, nos meus sonhos. Passou o
domingo entregue a coisas várias, daquelas minudências que nem se dizem. À
noite leu outro livro, que arrastava havia semanas, sem entusiasmos mas com
suficiente persistência. De novo adormeceu cedo, pensando em arranjar namorada,
talvez reconciliar-se com a anterior. E de novo ela, a mulher anunciada no
livro, promessa frustrada, apareceu no seu sonho: de novo completa, e transparente
e nua, bela, de novo pedindo, completa meu destino.
E
os dias sucederam-se, as noites também, iguais. O sonho voltava, ela voltava,
incólume. Podia repetir-se agora, no sonho, sem rasgo nem gasto, porque
perfeita. Chegou o sábado, dia de descanso, ele resolveu cumpri-lo.
Refastelou-se na mesma poltrona de há sete dias atrás, abriu o livro na página
oitenta, seguiu o rasto da mulher até ao final. Ela seguia, finamente cinzelada
nas entrelinhas, fio do enredo, entrevista como sol e sombra nas ramadas de
Verão. Só no final se tomava sarcástica. Nada mais. E todo o texto se
desmoronava à sua volta. Era uma vitória entre ruínas. Nessa noite de sábado
para domingo foi a sua última aparição. Lenta e nua, consistente e bela, ela
sorriu o seu adeus e disse: obrigado. Desapareceu para sempre. Mas a partir dai
ele nunca mais foi capaz de deixar um livro a meio: os suspiros das personagens
inacabadas eram suficientes para guiá-lo até ao fim». In Maria Isabel Barreno, Os
Sensos Incomuns, 1993, colecção Campo da Palavra, Grande Prémio do Conto, Editorial
Caminho, 2008, ISBN 978-972-210-886-7.
Cortesia
ECaminho/JDACT