As
amigas
«(…)
Eram três mulheres feias, amigas relativamente íntimas. Uma, via o mundo com os
olhos pequenos. Conjugavam-se nesse olhar dois factores: primeiro, ela
tinha os olhos pequenos; segundo, tinha uma visão estreita do mundo.
Seria difícil dizer o quê a causa, o quê o efeito: se os olhos se haviam
tornado pequenos pela visão estreita, se a visão se adaptara à dimensão
abarcável pelos olhos. Mas, para que o seu tipo de olhar sobre o mundo fique
completamente definido, deve ser acrescentado que ela piscava os olhos
incessantemente, como se se sentisse aturdida, confundida e se defendesse de um
mundo que não concordava consigo; como se lhe fosse necessário limpar e voltar
a limpar o olhar, obcecadamente procurando aprofundar, perfurar, a pequena área
da realidade que os seus olhos abrangiam; como, enfim, se o seu ego tivesse
sempre que sair triunfante de qualquer enigma, de qualquer dúvida que o mundo
exterior lhe trazia.
Outra
olhava o horizonte intensamente, de sobrolho franzido, enquanto roía as unhas.
Não era esta uma postura ocasional, uma atitude numa tarde depressiva: era a
sua natural postura. Levantava-se, arranjava-se, e logo saía de casa roendo as
unhas e olhando o horizonte. Assim guiava, assim se sentava à secretária no seu
emprego, assim conversava com os amigos. Quando via televisão tudo se passava
exactamente na mesma, a única diferença sendo a substituição de um horizonte
mais vasto pela televisão. As pessoas diziam-lhe que ela andava tensa, que era nervosa,
que deveria mudar de vida ou tratar-se. Ela respondia que sempre fora assim,
que não sentia nenhum nervoso especial, apenas o mundo lhe parecia fascinante e
assustador, digno daquele olhar intenso, sempre no horizonte, pronto para o
inevitável devir de todas as coisas e circunstâncias. De facto, o seu olhar e a
sua atenção não eram muito diferentes dos da primeira mulher, e elas
alicerçavam a sua amizade não muito íntima nessa mesma atenção persecutória ao
mundo: só que a primeira parecia usar os olhos como brocas, tentando perfurar a
realidade para nesses pequenos furos encaixar a sua estreita visão, e a segunda
resolvia o conflito duma forma autofágica, pronta a roer-se pela suspeita de
que destoava na paisagem que vislumbrava, começando nas unhas as primeiras
dentadas. Por isso a sua intimidade era relativa: o tempo duma confidência e
logo se afastavam em direcções opostas, em emoções contrárias, uma piscando
sobre o mundo o seu ego pimpão, a outra consumindo-se no fogo interior da
timidez; uma podendo ser chamada de Pestanejante, a outra de Autofágica.
De
longe, portanto, se estabelecia a sua amizade, se compreendiam sem cumplicidade
e se acenavam, como dois generais em campos opostos mirando pelo binóculo, com
respeito, a estratégia do seu colega de armas. A terceira tinha as sobrancelhas
estupidamente arqueadas, depiladas para fornecer esse efeito arqueado e
erguidas em perpétuo espanto. Viera duma classe social mais desfavorecida e o
seu gosto deixava bastante a desejar. A parte de cima do seu rosto, de
expressão totalmente arregalada, exprimia essa profunda surpresa, perante a
vida, perante o mundo, perante tudo, perante si própria. Abaixo, todo o resto
da cara exprimia agressividade: nas linhas duras da boca muito cerrada, nos
lábios quase inexistentes e também arqueados, com os cantos descaídos, no
queixo, tenso, projectado para a frente. Ela era prognata: assim dissera o
dentista a sua mãe, quando os dentes definitivos tinham vindo substituir os
dentes de leite. A mãe ficara alarmada e perguntara se era grave, e o dentista
ganhara o seu dia explicando com uma suavidade toda pedagógica que prognatismo
significava apenas ter-se os dentes de baixo mais para a frente do que os de
cima; era um dentista que gostava de espalhar o saber à sua volta,
especialmente quando em direcção do povo, e aqui termina o seu papel nesta
história.
Também
neste caso era difícil de saber qual a causa, qual o efeito: estendera-se o
queixo pela agressividade interior, viera a agressividade daquele queixo
protuberante, pronto a suscitar críticas e sarcasmos? Mas, nesta mulher, a
dúvida quanto às causas toma-se mais séria, toma-se uma dúvida visceral: qual a
parte dominante, qual a guia do seu caminho pelo mundo, o arregalado espanto
dos olhos e sobrancelhas, presença ainda explícita duma infância humilhada, ou
a dureza agressiva da boca e do queixo, esgrima defensiva que ela aprendera no
esforço do curso superior sacrificadamente pago pela família? Entre uma coisa e
outra, que mediações possíveis, que transições ou conflitos? De visível e de
óbvio só o riso. Esta mulher de contradições faciais ria-se muito, tinha
gargalhadas súbitas e muito sonoras, como quase todas as pessoas que têm poucas
explicações para o mundo e estão entaladas entre contradições que não lhes
afloram ao consciente, nem vêem no espelho apesar de óbvias». In Maria
Isabel Barreno, Os Sensos Incomuns, 1993, colecção Campo da Palavra, Grande
Prémio do Conto, Editorial Caminho, 2008, ISBN 978-972-210-886-7.
Cortesia
ECaminho/JDACT