«É
campónio demais aquele que se sente magoado por uma mulher que o engana e não
conhece o bastante os costumes da Urbe, onde não nasceram sem engano os filhos
de Marte, Rómulo, filho de Ília, e o filho de Ília, Remo». In
Ovídio
Reia
Sílvia (ca. 753 a. C.)
«(…) Apesar de Numitor ser mais
velho e o digno sucessor do trono, Amúlio era mais rico. A riqueza tornou-o
mais forte e não tardou a que usurpasse o trono ao irmão, matando-lhe os filhos
homens. No entanto, apesar de afastadas as ameaças ao poder que adquirira à força,
Amúlio não dormia descansado. Vivia em constante sobressalto, com pavor de ser
morto por algum parente vingativo. O perigo de tal acontecer não estava no
presente, que domesticara com o crime, mas no futuro de uma descendência
imprevisível. Numitor tinha uma filha de nome Ília, um nome que nos remete de
imediato para Ílion, que
significa Tróia. Mas chamavam à rapariga Reia Sílvia, que à época
estava em idade madura para casar. Ora,
a mera hipótese de a sobrinha dar à luz a prole que não hesitaria em vingar o
pai e o irmão atormentava o espírito fraco de Amúlio. Para ele, Reia
Sílvia era, como numa canção de Stephen Sondheime, a formiga no
piquenique, que à primeira vista parecia insignificante, mas que existia com
o único propósito de lhe estragar a festa. Para deixar de vez de temer pela
vida, Amúlio decidiu oferecer a rapariga a Vesta. Não seria extravagante, visto
que as raparigas oriundas de famílias senatoriais eram as únicas candidatas elegíveis
à função de sacerdotisa do templo. Mas a oferta fazia parte de um plano maior.
Fingindo dignificar Reia Sílvia com a honra de assistir à deusa, condenava-a à
castidade forçada. Tudo para viver em paz.
A entrega do corpo e da alma à
deusa Vesta não era o pior que podia acontecer a uma mulher na Antiguidade.
Recrutadas desde muito cedo, entre os seis e os dez anos, a virtude conferia a
estas mulheres um poder de intervenção na vida pública. As vestais tinham mais
liberdade de movimentos do que as mulheres comuns e eram livres de andar
desacompanhadas na rua, desde que fossem transportadas em liteiras. Passar por
baixo de uma liteira que transportava uma vestal era um acto punível com a
morte. As vestais gozavam de um estatuto legal especial que as diferenciava das
mulheres casadas e das que eram ainda apenas filhas. Qualquer homem casado
segundo a tradição romana tinha um poder sobre os seus descendentes biológicos
ou adoptados, que por sua vez não tinham direito à propriedade. As decisões
sobre as suas vidas eram tomadas pelo pater
familias, que exercia a patria
potestas sobre os que viviam debaixo do seu tecto, quer fossem
familiares ou escravos.
As vestais não estavam sob a patria potestas, mas também não eram
completamente autónomas. Embora não fossem propriedade de ninguém, obedeciam ao
pontifex maximus. O sacerdote
supremo não tinha o mesmo estatuto legal do pater
familias, mas estava nas suas mãos decidir se a vestal quebrara ou não
a promessa sagrada de castidade, bem como executar a pena de morte, no caso de
se confirmar um atentado contra Vesta e, por consequência, contra Roma. O poder
sobre a vestal era ele mesmo ambíguo, tal como era o estatuto da própria
virgem. A vestal não era casada, mas vestia a túnica até aos pés ou a stola. Nunca seria uma noiva, mas
usava bandas de linho no cabelo. Não era um homem, mas celebrava cerimónias religiosas
e acompanhava os senadores nos jogos.
A entrega à deusa Vesta também
trazia obrigações. As vestais eram as guardiãs do fogo de Roma, cuja
chama não podia esmorecer nem ser apagada. O fogo tinha um significado
religioso, aliás comum a muitas culturas, de união entre deuses e humanos.
Lidar com o fogo sagrado era uma tarefa que exigia dedicação plena e
imaculabilidade. A interferência de qualquer impureza na execução dos rituais
desequilibrava a união entre humanos e deuses e colocava a cidade em perigo. O
voto de castidade tinha de ser cumprido durante trinta anos. Os primeiros
dez seriam dedicados à aprendizagem das funções da sacerdotisa de Vesta no
templo, a segunda década à execução das tarefas e a última à passagem de
testemunho, antes do seu regresso à vida civil, numa altura a que chamamos hoje
a meia-idade. A vida nem sempre era pacífica para as vestais. O voto de
castidade que cumpriam era a sua maior força e ao mesmo tempo a sua maior fragilidade.
A mera suspeita de incestus,
que tem o significado original de impuro,
manchado ou sacrílego uma intrusão na castidade, podia ser suficiente para
condenar a vestal à morte. Não havia nenhuma estátua da deusa no templo, apenas
a chama que as vestais tinham o dever de manter viva. Além da vigilância do
fogo sagrado, a confecção de uma refeição salgada, mola salsa, usada nos sacrifícios públicos, fazia parte das
tarefas diárias da sacerdotisa. Mas a atenção ao fogo do templo era de
importância vital.
O enfraquecimento da chama era
interpretado como um sinal de possível quebra da promessa de castidade. A
chama a arder simbolizava a sexualidade protegida, nunca consumada, da virgem.
A chama apagada indicava a sua impureza. E a impureza era perigosa para a
cidade. Segundo uma lei mais antiga do que a própria Reia Sílvia, as vestais
que quebrassem a promessa de castidade eram enterradas vivas. O castigo, de uma
brutalidade inconcebível aos nossos olhos, era entendido como a consequência
natural da quebra de dedicação a um modo de vida religioso, em que a castidade era
uma condição e um valor. Não esqueçamos que era também por ser virgem que
estava livre da patria potestas.
Nada restaria de uma vestal que perdesse a virgindade porque ser virgem era
precisamente o que justificava a sua existência». In Carla Hilário Quevedo, As
Mulheres Que Fizeram Roma, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2015, ISBN
978-989-626-688-2.
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