domingo, 8 de novembro de 2015

A Conspiração Sixtina. Philippe Vandenberg. «Afinal, Miguel Ângelo sofrera com os seus clientes, mais precisamente com os papas, tendo declarado mais do que uma vez que se haveria de vingar deles à sua maneira»

jdact

Sobre o prazer de contar histórias
Na Epifania
«(…) Maldito seja o dia em que a Cúria resolveu restaurar a Capela Sixtina segundo as mais recentes descobertas científicas. Maldito seja o florentino, maldita toda e qualquer arte (?), maldita a audácia de não proferir pensamentos heréticos com a coragem dos hereges, mas de os confiar à cal moída, à mais ignóbil de todas as pedras, buon fesco misturado com cores lascivas. O cardeal Joseph Jellinek ergueu o olhar para a abóbada alta, onde estavam pendurados uns andaimes tapados com lonas. Os andaimes deixavam ainda entrever a figura de Adão a ser apontada pelo dedo do Criador. Como se o cardeal temesse a potente mão direita de Deus, o seu rosto foi alterado por um tremor absolutamente perceptível que se repetiu mais umas tantas vezes a intervalos irregulares; pois lá em cima, envolto em trajes vermelhos, não pairava um Deus bondoso, mas um Criador forte e belo, com um corpo musculado como o de um lutador, um Criador que emanava vida. Ali mesmo, o verbo tinha-se tornado carne. Desde os funestos tempos do pontífice Júlio II e do seu gosto pela arte, nenhum papa se deleitara com as pinturas orgíacas de Miguel Ângelo Buonarroti, que tinha uma postura um tanto ou quanto incrédula perante a fé cristã, o que, aliás, já no seu tempo era um segredo partilhado por todos. Buonarroti compunha as imagens que a fantasia lhe ditava numa estranha mistura de tradições fundamentadas no Antigo Testamento e outras que remontavam à Grécia Antiga, ou porventura também a um passado romano idealizado, o que, na altura, era visto simplesmente como pecado. Segundo consta, o papa Júlio II ajoelhou-se no chão e começou a rezar quando o artista lhe mostrou pela primeira vez o fresco com o cruel juiz que deixa a tremer bons e maus com a força da sua sentença. Ainda mal recuperado da sua humildade, começou uma violenta discussão com Buonarroti sobre a estranheza, o mistério e a nudez da representação. A Cúria, por seu turno, sentiu-se desconcertada pelo simbolismo intangível, pelas inúmeras alusões e insinuações neoplatónicas, não encontrando outra solução senão censurar esta aglomeração de corpos humanos nus e, pior ainda, exigir que fosse retirada. Além do mais, à frente da Cúria estava Biagio Cesena, o mestre-de-cerimónias do próprio papa, que acreditava reconhecer-se em Minos, o juiz dos infernos. Somente o veto indignado dos mais importantes artistas de Roma acabou por salvar O Juízo Final da demolição.
Infiltrações, várias camadas de pintura sobrepostas e a fuligem das velas ameaçavam destruir o golpe de génio orgíaco de Miguel Ângelo. Oh, se pelo menos o bolor tivesse comido os profetas e o fumo tivesse consumido as sibilas; pois, mal o restaurador-chefe Bruno Fedrizzi começara o seu trabalho, empoleirado nos andaimes, mal ele libertara, com a ajuda dos assistentes, os primeiros profetas de uma camada escura, composta por carbono, cola de coelho e pigmentos diluídos em óleo, o legado do florentino iniciou o seu curso, pareceu até que Miguel Ângelo ressuscitava de entre os mortos, ameaçador como o anjo da vingança. Outrora, Joel, o profeta, segurava nas mãos um rolo obscuro de pergaminho que, apesar de estar revirado para trás entre a mão esquerda e a direita, não tinha qualquer símbolo escrito, nem na parte da frente, nem no verso. Agora, depois de feita a limpeza, reconhecia-se claramente um A no pergaminho. O A e o O, a primeira e última letras do alfabeto grego, são símbolos cristãos da Igreja primitiva, mas os restauradores esfregaram em vão, até que o pergaminho pintado al fresco (pintado sobre o estuque ainda húmido) reluziu num branco brilhante. A cal não escondia nenhum O. Em contrapartida, no livro que a sibila eritreia, que se encontra ao lado do profeta Joel, segura sobre um púlpito, apareceu mais uma enigmática abreviatura: I F A. Esta inesperada aparição levou a uma violenta discussão, sem que, no entanto, o público em geral tomasse conhecimento do acto. Arquivistas e historiadores de arte da Direcção-Geral dos Edifícios e Museus do Vaticano deram um parecer sobre a descoberta; sob a tutela do catedrático Antonio Pavanetto, de Florença, veio o perito em Miguel Ângelo Riccardo Parenti; e, depois de o significado das letras A I F A ter sido discutido internamente, o cardeal Secretário de Estado Cascone declarou a descoberta como assunto secreto. Foi também Parenti quem comentou pela primeira vez a possibilidade de se poderem vir a descobrir novos símbolos no decurso dos trabalhos de restauro; símbolos esses cuja decifração, em princípio, poderia ser pouco favorável à Cúria e à Igreja. Afinal, Miguel Ângelo sofrera com os seus clientes, mais precisamente com os papas, tendo declarado mais do que uma vez que se haveria de vingar deles à sua maneira. O cardeal Secretário de Estado perguntou então se seria de esperar que o pintor florentino tivesse representado pensamentos heréticos, ao que o professor catedrático respondeu afirmativamente, mas com algumas reservas». In Philippe Vandenberg, A Conspiração Sixtina, 1991, tradução de Ruth Correia, Quidnovi, Matosinhos, 2006, ISBN 978-989-628-060-4.

Cortesia de Quidnovi/JDACT