Sobre
o prazer de contar histórias
Na
Epifania
«(…) Posto isto, o cardeal Secretário
de Estado, Giuliano Cascone, consultou o prefeito da Congregação para a
Doutrina da Fé, o cardeal Joseph Jellinek, o qual, no entanto, não se mostrou grandemente
interessado na questão, aconselhando que a Direcção-Geral dos Edifícios e Museus
do Vaticano e o seu director, o catedrático Pavanetto, se encarregassem do caso,
e dando ainda a entender não estar muito convencido de que se trataria mesmo de
um caso. O Santo Ofício (maldito)
não
queria intrometer-se no assunto. Quando, no ano seguinte, os trabalhos de
restauro começaram na figura do profeta Ezequiel, o interesse da Cúria focou-se
principalmente no pergaminho que o homem que anunciara a destruição de Jerusalém
segurava na mão esquerda. Ao que tudo indica, anunciou Fedrizzi, nessa parte o fresco
apresentava uma camada muito espessa de fuligem, como se tivesse sido enegrecido
com a ajuda de uma vela para escurecer artificialmente a zona em questão. Por fim,
a esponja do restaurador fez aparecer mais duas letras, o L e o U, após o que o catedrático
Pavanetto exprimiu a suposição de que também a sibila persa, que vem a seguir a
Ezequiel, esconderia um mistério composto por letras. Esta velha corcunda, que ao
que tudo indica é míope, segura um livro de capa vermelha directamente à frente
dos olhos. E, de facto, de um andaime colocado perto da figura, Bruno Fedrizzi
já tinha conseguido reconhecer os contornos de uma letra antes da limpeza. O cardeal
Secretário de Estado Cascone, a quem a descoberta parecia inquietar mais do que
aos demais, mandou que se fizesse uma limpeza experimental ao livro da sibila. Desta
forma, a suposição tornou-se certeza, somando-se mais uma letra, um B, à combinação já existente. Portanto,
tinha de se partir do pressuposto de que o último vulto na fila, o profeta Jeremias,
também iria desvendar alguma abreviatura, e o pergaminho a seu lado mostrava
realmente uma letra, um outro A. O
profeta Jeremias, que, mais do que qualquer outro homem, vivia atormentado por uma
luta interior e proferira abertamente que o povo nunca iria ser convertido, esse
profeta a quem Miguel Ângelo dera o seu próprio rosto desesperado, permaneceu
calado, resignado, desconcertado, como se conhecesse o significado misterioso da
série de letras: AIFALUBA.
O cardeal Secretário de Estado, Giuliano
Cascone, declarou que o significado das inscrições murais deveria ser
esclarecido antes que se desse a conhecer a descoberta ao público. Cascone sugeriu
ainda um debate sobre a possibilidade de se lavarem as abreviaturas inexplicáveis
da parede se o seu mistério não conseguisse ser resolvido sem demoras, o que,
segundo informações do restaurador-chefe Bruno Fedrizzi, não poria problemas
técnicos, porque Miguel Ângelo tinha pintado as siglas a secco (pintado sobre o estuque seco) sobre os frescos já acabados,
juntamente com algumas pequenas correcções de pouca importância. Mas o catedrático
Riccardo Parenti protestou veementemente, ameaçando mesmo que, nesse caso, se veria
obrigado a renunciar ao seu cargo de conselheiro e a dirigir-se à opinião
pública, de forma a alertar para o facto de que na Capela Sixtina se estava a falsificar
e destruir o que, sem dúvida, seria a obra de arte mais importante do mundo. Em
consequência da reacção do catedrático, Cascone desistiu dos seus planos e fez um
requerimento ex officio (por
dever do ofício) ao cardeal Joseph Jellinek para que, na sua qualidade de prefeito
da Congregação para a Doutrina da Fé, criasse uma comissão para a investigação das
inscrições na Capela Sixtina, com o fim de discutir os resultados numa assembleia
ordinária. Simultaneamenre, o assunto foi elevado de assunto de categoria speciali modo para assunto de categoria
specialissimo modo, segundo a qual
qualquer transgressão da obrigação de o manter secreto seria sancionada com a pena
eclesiástica de interdição. A data estabelecida para o concílio foi a segunda-feira
a seguir ao segundo domingo após a Epifania.
Jellinek
saiu da capela e subiu as estreitas escadas de pedra, arregaçando habilmente a sotaina,
que, como toda a sua indumentária, provinha do atelier de Annibale Gammarelli, à Rua de Santa Chiara n.º 34, onde
tanto a Cúria como o papa mandavam confeccionar as suas vestes. Quando chegou ao
patamar da escada, Jellinek virou à esquerda, continuando nessa direcção. Os seus
passos exaltados ecoavam pelo comprido e vazio corredor, que exigia pelo menos
duzentos passos para ser percorrido. Jellinek passou pelos mapas pintados nas paredes
pelo cosmógrafo Danti e escolhidos segundo oitenta quadros da História da
Igreja, os quais o papa Gregório XIII mandara pintar entre o estuque dourado do
infindável corredor com o tecto abobadado. O cardeal só parou defronte daquela porta
que, não tendo fechadura nem manípulo, vedava o acesso à Torre dos Ventos, tal
qual uma escotilha intransponível. Bateu à porta, fazendo um sinal combinado, e
quedou-se imóvel, sabendo que o encarregado que lha viria abrir tinha de percorrer
um caminho bastante longo». In Philippe Vandenberg, A Conspiração Sixtina,
1991, tradução de Ruth Correia, Quidnovi, Matosinhos, 2006, ISBN
978-989-628-060-4.
Cortesia
de Quidnovi/JDACT