domingo, 8 de novembro de 2015

A Conspiração Sixtina. Philippe Vandenberg. «O profeta Jeremias, que, mais do que qualquer outro homem, vivia atormentado por uma luta interior; esse profeta a quem Miguel Ângelo dera o seu próprio rosto desesperado, permaneceu calado, resignado, desconcertado…»

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Sobre o prazer de contar histórias
Na Epifania
«(…) Posto isto, o cardeal Secretário de Estado, Giuliano Cascone, consultou o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Joseph Jellinek, o qual, no entanto, não se mostrou grandemente interessado na questão, aconselhando que a Direcção-Geral dos Edifícios e Museus do Vaticano e o seu director, o catedrático Pavanetto, se encarregassem do caso, e dando ainda a entender não estar muito convencido de que se trataria mesmo de um caso. O Santo Ofício (maldito) não queria intrometer-se no assunto. Quando, no ano seguinte, os trabalhos de restauro começaram na figura do profeta Ezequiel, o interesse da Cúria focou-se principalmente no pergaminho que o homem que anunciara a destruição de Jerusalém segurava na mão esquerda. Ao que tudo indica, anunciou Fedrizzi, nessa parte o fresco apresentava uma camada muito espessa de fuligem, como se tivesse sido enegrecido com a ajuda de uma vela para escurecer artificialmente a zona em questão. Por fim, a esponja do restaurador fez aparecer mais duas letras, o L e o U, após o que o catedrático Pavanetto exprimiu a suposição de que também a sibila persa, que vem a seguir a Ezequiel, esconderia um mistério composto por letras. Esta velha corcunda, que ao que tudo indica é míope, segura um livro de capa vermelha directamente à frente dos olhos. E, de facto, de um andaime colocado perto da figura, Bruno Fedrizzi já tinha conseguido reconhecer os contornos de uma letra antes da limpeza. O cardeal Secretário de Estado Cascone, a quem a descoberta parecia inquietar mais do que aos demais, mandou que se fizesse uma limpeza experimental ao livro da sibila. Desta forma, a suposição tornou-se certeza, somando-se mais uma letra, um B, à combinação já existente. Portanto, tinha de se partir do pressuposto de que o último vulto na fila, o profeta Jeremias, também iria desvendar alguma abreviatura, e o pergaminho a seu lado mostrava realmente uma letra, um outro A. O profeta Jeremias, que, mais do que qualquer outro homem, vivia atormentado por uma luta interior e proferira abertamente que o povo nunca iria ser convertido, esse profeta a quem Miguel Ângelo dera o seu próprio rosto desesperado, permaneceu calado, resignado, desconcertado, como se conhecesse o significado misterioso da série de letras: AIFALUBA.
O cardeal Secretário de Estado, Giuliano Cascone, declarou que o significado das inscrições murais deveria ser esclarecido antes que se desse a conhecer a descoberta ao público. Cascone sugeriu ainda um debate sobre a possibilidade de se lavarem as abreviaturas inexplicáveis da parede se o seu mistério não conseguisse ser resolvido sem demoras, o que, segundo informações do restaurador-chefe Bruno Fedrizzi, não poria problemas técnicos, porque Miguel Ângelo tinha pintado as siglas a secco (pintado sobre o estuque seco) sobre os frescos já acabados, juntamente com algumas pequenas correcções de pouca importância. Mas o catedrático Riccardo Parenti protestou veementemente, ameaçando mesmo que, nesse caso, se veria obrigado a renunciar ao seu cargo de conselheiro e a dirigir-se à opinião pública, de forma a alertar para o facto de que na Capela Sixtina se estava a falsificar e destruir o que, sem dúvida, seria a obra de arte mais importante do mundo. Em consequência da reacção do catedrático, Cascone desistiu dos seus planos e fez um requerimento ex officio (por dever do ofício) ao cardeal Joseph Jellinek para que, na sua qualidade de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, criasse uma comissão para a investigação das inscrições na Capela Sixtina, com o fim de discutir os resultados numa assembleia ordinária. Simultaneamenre, o assunto foi elevado de assunto de categoria speciali modo para assunto de categoria specialissimo modo, segundo a qual qualquer transgressão da obrigação de o manter secreto seria sancionada com a pena eclesiástica de interdição. A data estabelecida para o concílio foi a segunda-feira a seguir ao segundo domingo após a Epifania.
Jellinek saiu da capela e subiu as estreitas escadas de pedra, arregaçando habilmente a sotaina, que, como toda a sua indumentária, provinha do atelier de Annibale Gammarelli, à Rua de Santa Chiara n.º 34, onde tanto a Cúria como o papa mandavam confeccionar as suas vestes. Quando chegou ao patamar da escada, Jellinek virou à esquerda, continuando nessa direcção. Os seus passos exaltados ecoavam pelo comprido e vazio corredor, que exigia pelo menos duzentos passos para ser percorrido. Jellinek passou pelos mapas pintados nas paredes pelo cosmógrafo Danti e escolhidos segundo oitenta quadros da História da Igreja, os quais o papa Gregório XIII mandara pintar entre o estuque dourado do infindável corredor com o tecto abobadado. O cardeal só parou defronte daquela porta que, não tendo fechadura nem manípulo, vedava o acesso à Torre dos Ventos, tal qual uma escotilha intransponível. Bateu à porta, fazendo um sinal combinado, e quedou-se imóvel, sabendo que o encarregado que lha viria abrir tinha de percorrer um caminho bastante longo». In Philippe Vandenberg, A Conspiração Sixtina, 1991, tradução de Ruth Correia, Quidnovi, Matosinhos, 2006, ISBN 978-989-628-060-4.

Cortesia de Quidnovi/JDACT