«(…) Um berro imenso acorda-me do
delírio. Toda a gente se suspende a olhar. É uma aflição soprada como de um cano
largo e desentupido, misturada com a gritaria de homens que se dão ordens
desencontradas. A nau está acostada ao cais em frente da casota do guindaste.
Na tolda, em redor da bocarra do porão, uma chusma de marinheiros olha para baixo.
Da lança da grua, por cima das suas cabeças, grossa corda retesada vai mergulhar
na escuridão da caverna, de cujas entranhas soa o brado atroador. Até as
gaivotas num alor repentino desandaram para longe. No cais, de cada lado e a distância
da máquina gigante, grupos de moços aguardam segurando compridas amarras que se
vão também esconder no ventre do barco. No interior das duas grandes rodas gradeadas
que ladeiam a viga aprumada do engenho, caminham de pés descalços degrau a degrau
sem saírem do sítio, de tanga e tronco nu, os escravos mouros que fazem girar
os mecanismos a recolher o cabo. Esforçados, estalam e arquejam os madeiros, que
parecem prestes a rebentar. Algo muito pesado deve vir subindo e barregando do negrume.
Os olhares param nas respirações contidas. Eis surge o monstro nunca visto. As pessoas
em terra esboçam um arremedo de fuga, num calafrio, os cabelos em pé. Dorso pardo
enrugado, a massa corpulenta enlaçada pela barriga nas voltas de cadeias de ferro
em que vem prender o gancho, aí sai ele pendurado, a cabeça descomunal, orelhuda,
o nariz prolongando-se num tubo que troa que nem mil trombetas, duas extensas presas
recurvas de marfim de um e outro lado da boca. A cauda curta, na sua agonia a alimária
vai despejando do cu pastelões de bosta que se desfazem pelo ar ou se esborracham
fumegantes na coberta da nau, na borda do cais. Baloiça no espaço, as pernas como
quatro cepos. Os moços puxam as cordas a iguarem o balanço do corpanzil. Lá
desce devagar. Em baixo o mestre faz sinais com os braços a indicar o sítio do poiso:
Mais avante! Houxe! Arreia! Assim..., à direita... Berra a besta o barrego
curvando ao alto a comprida tromba, ringem as roldanas, trissa o eixo. Esperam-na
no solo dois negros encorpados, com molhos de erva e legumes frescos e uma cesta
de fruta, junto de uma selha com água limpa. Mal poisa no chão, um deles
aproxima-se a fazer-lhe festas e a meter-lhe nas beiças penugentas torrões de açúcar,
cenouras, punhados de verdura, enquanto o outro, ajudado pelos moços, desengancha
o calabre e desata as cadeias.
O bicho sossega e o tratador
leva-o à beira da tina a beber num sorvo lento e fundo. põe-se o ajudante a lavá-lo
com baldadas de água, a limpá-lo com o esfregão e a incitá-lo, num linguajar cheio
de risos, a não sei quê. Mostra entendê-lo o animal, que logo, por instantes, na
selha mergulha o cano, retira-o, recurva-o sobre si e lança o líquido pelo costado.
Sentindo-o manso, começam as pessoas a abeirar-se em volta. Ele repete três, quatro
vezes a manobra, banhando-se de chuveiro enquanto os dois homens o vão escovando
com vassouras encabadas em paus. Chega-se-lhe de novo o tratador junto da boca
a oferecer-lhe mimos na palma da mão e a bichanar-lhe ao ouvido os seus
segredos. Torna ele a meter na água o longo apêndice, a enchê-lo calmamente, recolhe-o
erguendo-o e de repente desata a borrifar a toda a roda a assistência, que grita
e foge esbaforida. Na pretidão das caras está-se rindo a alvura dos olhos e a neve
da dentuça dos dois negros, que enxugam agora o animalejo, arreiam-lhe os
lombos com uma manta colorida e a fronte com grinaldas de flores e enfeites de plumas.
A um sinal ele ajoelha e os negros sobem-lhe ao cachaço, à espinha,
iniciando-se uma caminhada pesadona e bamboleante por entre a multidão que bate
palmas e dá gargalhadas e atira chufas. À frente já se postaram cavaleiros e peões
e homens grados, direitos à Alcáçova, em demanda de ti, meu senhor. Deixo passar
a turba e, logo que rareia, sigo de meu passo meditando em tudo o que vi. São estes,
na realidade, sinais dos novos tempos, deste novo mundo que está surgindo e tudo
modificando. Este Tejo que quase se lhe não vêem as ondas, tantos os galeões,
naus, caravelas, galés, urcas, barcas, barinéis, de todas as nações, que nelas estão
varando.
[…]
Separam-se e o judeu, sobraçando um
embrulho, caminha lesto e curvado pela borda da água, guina à esquerda, atravessando
o terreiro pela extremidade dos estaleiros em direcção ao Arco do Açougue. Como
é por aí que pretendo regressar, aligeiro o passo e ponho-me a segui-lo. Perco-o
de vista. Encolho os ombros. Que importa? Ele vai à sua vida e eu à minha. De
novo no Pelourinho, chego-me enfim à casa a que venho encomendado. Empurro a
porta, só encostada, e entro. Pequena quadra alumiada por escassa janela. Nas
paredes, prateleiras pejadas de frascos, caixas, vasilhas com rótulos de plantas.
Numa estante, aberto, o Liber lapidum
de Marbodo, ao lado empilhados outros lapidários e gemários, um Hortus Salutatis, um Livro das Aves. A um canto, na pedra
mármore pousada sobre a banca, o oficial manipula mezinhas que vai pesando numa
balancinha de cobre. Fervem babugens de líquidos duvidosos em retortas de vidro.
O ar está emprenhado de vapores, de cheiros indefiníveis, que causam picos na garganta
e me fazem tossir. O oficial nem sequer levanta os olhos, mas uma cortina descerra-se
num vão do fundo e um homenzinho curvo, de labita preta, vem ao meu encontro. Reconheço
o judeu de há pouco no cais...» In Fernando Campos, A Esmeralda Partida,
1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.
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