«(…) Era tarde, a manhã escoara-se.
Quando regressei, consultavas tu com alguns dos teus peritos, na mesa grande pejada
de papéis, essas cartas do mundo, portulanos e roteiros, livros de marear, itinerários
de caravaneiros, os mapas das constelações celestes, que rapidamente se verifica
ser necessário acrescentar-se-lhes a todos eles emendas e novidades, de tal maneira
a terra e os céus se vão tornando maiores. Até Deus parece inchar e dilatar-se a
cada polegada que o homem avança, a cada cruz de Cristo erguida em chão
incógnito no topo de um padrão de pedra. Mas tu gostavas de nos contrariar: Não,
não. Pelo contrário, amigos. A terra está a ficar cada vez mais pequena. Como assim,
senhor? As nossas caravelas chegam mais de pronto a outros mundos do que nós a
Alvor, é o que vos garanto. Uma numerosa armada está pronta a largar para a longa
viagem ao outro lado dos mares. Quanta fadiga despendeste em lhe vigiar a construção,
em a munir de tudo o indispensável! Alvor! Tanta fadiga..., para afinal não poderes
agora assistir à sua largada, estendido no leito, junto do chão… Não cuidava eu
que alguma vez viesse a achar-me em tais circunstâncias. Aí jazes morto, na rigidez
gelada… Retirai-me essa arquelha e a cortina de esparavéis ordenaste tu
próprio, sentindo o transe avizinhar-se, desenganado dos físicos. Desfazei a cama
alta. Quero a enxerga rasa, ao rés do sobrado. Desmancharam os véus, os panejamentos,
as armações, apearam o leito. Desejavas morrer junto ao pó em que te vais tornar?
Simulavas, como quase sempre na vida? Que trágico entremez era esse? Reconhecias
enfim que a diferença entre a realeza e o povinho é o palmo de madeira do estrado
do trono, dos véus do tambo? Afeiçoaram a cómoda a altar, com toalha, castiçais,
alfaias vindas da igreja, cruz, retábulo de Cristo crucificado, Nossa Senhora e
São João teu patrono. Não se esqueceram até de trazer a naveta do incenso e o turíbulo,
a caldeira da água benta com um hissope de prata. Assististe a estes preparativos
sentado numa cadeira, vestido com um camisão de flanela até aos pés, um carapuço
de dormir na cabeça. Davas sugestões e ordens com o mesmo sentido de minúcia e
empenhamento que marcava tudo quanto fazias, a postura tão isenta e majestosa como
se estivesses preparando as festas de núpcias de teu filho com a princesa dona
Isabel ou organizando justas reais… Domingo de manhã enviaste à pressa a Lagos pelos
óleos santos. Quando o pároco da vila chegou com o requerido, ouviste missa, comungaste
e os bispos e capelães ungiram-te. Ao jantar tomaste umas sopas de calda de lombo
de vaca assado, mas sobrevieram-te tamanhos e tão arrancados soluços que parecia
com eles despedir-se-te a alma. Acudia o bispo de Tânger com palavras piedosas
e a evocação de passos do Antigo Testamento. Bispo, reagiste, não me recordes a
Lei Velha. Estava ai ao lado João Camelo, bispo do Algarve. Homem dissipador e mundano,
nunca rezava missa nem se ocupava de ofícios divinos. Várias vezes o havias repreendido
e não quiseste agora deixar de o fazer. Terei eu de partir com este fardo, bispo?
Ora, por amor de mim jura que daqui em diante viverás bem e ao serviço de Deus.
Por minha fé, senhor, assim farei ajoelhou-se ele a beijar-te a mão. Ordenaste por
escrito teus pedidos de perdão à rainha, à infanta tua sogra, ao cardeal de Portugal,
a todos aqueles, cavaleiros, clérigos e povos, a quem porventura tivesses feito
alguma injustiça. Com poucas horas de vida, entraram-te alguns com petições,
lembrando-te serviços prestados, pobre de ti, que nesse horrível acto de morrer
te vinham com requerimentos mundanos, sem nenhuma consideração do que à tua alma
cumpria! E insistiam e inquietavam-te. A princípio não opuseste resistência e ias
assinando, embora te custasse pelo inchaço das mãos, mercês de tenças e quitações,
ofícios e benefícios, satisfações em dinheiro, segundo os merecimentos de cada um.
Sentindo-te forçado, tiveste por fim um lampejo de vigor: Não! Já nada é meu disseste
entregando-me a pena. Se satisfizesse tudo o que me pedis, pareceria que dou o que
não me pertence. Porque de ti já coisa nenhuma havia a esperar, no semblante de
muitos eram patentes os pensamentos a voarem-lhes para o futuro soberano, a quem
urgia conquistar favores. O camareiro-mor, Aires Silva, nem esperou pelo teu passamento.
Acercou-se de ti a solicitar-te, sô color de serviço, permissão de partir daqui
a dar conhecimento ao duque Manuel do conteúdo do testamento que o designa
sucessor da coroa». In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008,
ISBN 978-972-290-330-1.
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