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As cidades e os mortos. 3.
«(…) É claro que são os vivos que pedem para depois de mortos
um destino diferente do que lhes calhou: a necrópole está cheia de caçadores de
leões, meios-sopranos, banqueiros, violinistas, duquesas, cortesãs, generais,
mais dos que contou a cidade viva. A incumbência de levar lá, para baixo os
mortos e colocá-los no lugar desejado está outorgada a uma confraria de encapuçados.
Mais ninguém tem acesso à Eusápia dos
mortos e tudo o que se sabe lá de baixo sabe-se por eles. Diz-se que a própria
confraria existe entre os mortos e que não deixa de lhes dar uma ajuda; os
encapuçados depois de mortos prosseguirão também o mesmo ofício na outra Eusápia; fazem crer que alguns deles já
estão mortos e continuam a andar para cima e para baixo. É evidente que é muito
ampla a autoridade desta congregação sobre a Eusápia dos vivos.
Dizem que sempre que descem encontram qualquer coisa mudada
na Eusápia de baixo; os mortos trazem
inovações à sua cidade; não muitas, mas certamente fruto de reflexão ponderada,
e não de caprichos passageiros. De um ano para o outro, dizem, a Eusápia dos mortos não se reconhece. E os
vivos, para não lhes ficaram atrás, querem fazer também tudo o que os encapuçados
contam das novidades dos mortos. Assim a Eusápia
dos vivos pôs-se a copiar a sua cópia subterrânea. Dizem que isto não é só
agora que acontece: na realidade teriam sido os mortos a construir a Eusápia de cima à semelhança da sua
cidade. Dizem que nas duas cidades gémeas já não há maneira de saber quais são
os vivos e quais os mortos.
As cidades e a memória. 3
Inutilmente, magnânimo Kublai, tentarei descrever-te a cidade
de Zaira de altos bastiões. Poderia dizer-te de quantos degraus são as ruas em
escadinhas, como são as aberturas dos arcos dos pórticos, de quantas lâminas de
zinco são cobertos os telhados; mas já sei que seria o mesmo que não te dizer
nada. Não e disto que é feita a cidade, mas sim das relações entre as medidas
do seu espaço e os acontecimentos do seu passado: a distância a que está do
solo um lampião e os pés a balançar de um usurpador enforcado; o fio estendido
do lampião à varanda da frente e os arcos que enfeitam o percurso do cortejo
nupcial da rainha; a altura daquela varanda e o salto do adúltero que a galgava
de madrugada; a inclinação de uma goteira e o pulo de um gato que entra pela
janela; a linha de tiro do navio bombardeiro que apareceu de repente por detrás
do cabo e a bomba que destrói a goteira; os puxões das redes dos pescadores e
os três velhos que sentados no cais a remendar as redes contam uns aos outros
pela centésima vez a história do navio bombardeiro do usurpador, de quem se diz
que era filho ilegítimo da rainha, abandonado à nascença ali no cais. E desta
onda que reflui das recordações que a cidade se embebe como uma esponja e se
dilata. Uma descrição de Zaita tal como e hoje deveria conter todo o passado de
Zaira. Mas a cidade não conta o seu passado, contém-no como as linhas da mão,
escrito nas esquinas das ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das
escadas, nas antenas dos pára-raios, nos postes das bandeiras, cada segmento marcado
por sua vez de arranhões, riscos, cortes e entalhes.
As cidades e o desejo. 2
Ao cabo de três dias, andando para o meio-dia, o homem encontra-se
em Anastásia, cidade banhada por canais concêntricos e sobrevoada por grandes
papagaios de papel. Eu deveria agora enumerar as mercadorias que aqui se compram
com lucro: ágata ónix crisoprásio e outras variedades de calcedónia; gabar a
carne do faisão dourado que se cozinha no fogo de lenha de cerejeira seca e se
barra com muito oregão; falar das mulheres que vi tomar banho na piscina de um
jardim e que às vezes convidam, conta-se, o transeunte a despir-se e a correr
atrás delas na água. Mas com estas notícias não te diria a verdadeira essência
da cidade: porque enquanto a descrição de Anastásia se limita a despertar os
desejos um de cada vez para te obrigar a sufocá-los, a quem se encontra uma
manhã no meio de Anastásia os desejos despertam todos ao mesmo tempo a assediar-nos».
In
Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, 1990, Editorial Teorema, Lisboa, 2003,
ISBN 972-695-374-X.
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