O Arco
da Santa. A Conversa das Vizinhas
«(…)
E as lágrimas, fio a fio, a correr pelas faces da pobre noiva, que mais
interessante e linda a faziam. E deve de saber o leitor que ela era linda, como
eu seguramente creio, e em poucas linhas se verá por quê. As lágrimas porém da
boa Ana, com serem mui sentidas e sinceras, não lhe interromperam o discurso
nem por meio segundo; continuou logo: Sim, sim; e bem no digo eu. Tenho coisa
cá dentro que me agoura grande mal a mim e aos meus: e não me vem senão daquele
bispo, que é a perdição e ruína desta cidade, ele e os seus cónegos e os seus
portageiros e os seus archeiros e toda essa gente da Sé. E mete na conta o
reverendo padre fr. João Arrifana, que é boa peça. Mas não há-de ser assim,
Aninhas, que Deus nos há-de acudir, e a justiça del-rei Pedro I. E donde há de
ela vir, menina? Não sabes que desde o interdito grande e das excomunhões que
houve nesta terra por causa do alvoroço do povo contra a tirania do bispo o rei
Pedro, e que depois se acordou tudo com el-rei e o papa, nunca mais as justiças
del-rei se quiseram meter com a nossa terra, nem catar-nos foros, nem ser por
nós, e nos deixaram à mercê do bispo e da sua gente? Como há de el-rei Pedro
agora?... Sei tudo isso, sei; mas olha que há de vir quando eles menos o
esperarem, com aquela espada na sua real mão, que Deus temperou para destruição
de tiranos e avexadores do povo. Que cedo faça Deus esse milagre, Gertrudinhas.
Senão, mal estou; que ainda hoje aqui veio o almudeiro do bispo, aquele
esconjurado leva-e-traz, que de manhã rouba o povo na casinha da portagem e de
tarde faz o ofício do demónio tentador, a desinquietar quanto rapariga e mulher
honesta tem o Porto...
Para
serviço e aumento da igreja de Deus!... Dizem eles. Não, filha, quem tal bispo
nos deu... Também! Foi el-rei defunto que cá o pôs. No fim da sua vida faziam
dele quanto queriam, principalmente frades e clérigos e gente de guerra, a quem
parece que Deus deu este reino por seu... Deus não, que é pecado tal dizer:
deu-lho o demo por nossas culpas. Mas que te disse o almudeiro? Esconjurado
seja ele! Veio com os mesmos recados do costume: Que tivesse eu mais juízo e prudência; que fosse onde me diziam, ou
desse hora em que o bispo cá viesse; que não escorraçasse a fortuna que à porta
me batia... Que meu marido, se eu teimasse, nunca mais o veria; que nas covas
dos paços da Sé mo haviam de enterrar vivo, donde sol nem lua veria, e pão e
água comeria como um forçado das galés del-rei. E trazia-me presentes de
ricas pedras e de ouro fino que me lançou no regaço, e teimou tanto até que... Até
o que, menina?... Que lhas arremessei à cara com quanta força tinha. E bem
arranhada lhe ficou: inda bem! Inda bem, querida Aninhas! E o ladrão do
almudeiro?...
Fez-se
negro de raiva com o insulto; e, sem dizer palavra, começou a ajuntar o que
estava pelo chão, pérolas, ouro... Jóias bem lindas eram elas! E meteu tudo nos
golpes de saio, e foi-se sem mais Deus te salve do que um sumido Tu mo pagarás,
que ia rosnando pela escada abaixo. Tens razão para ter medo, filha; agora o
vejo eu: mas ainda lhe havemos de dar remédio. Quem? Eu... Nós, se Deus quiser;
nós e a nossa boa fortuna. Nós! Tu com dezasseis anos e eu com vinte, teu tio
na corte, meu marido em Lisboa, que havemos nós de fazer, mulheres, sós e sem
ninguém? Sem ninguém! Sem ninguém não, que aqui tenho a minha madrinha e
padroeira, a minha senhora Sant’Ana.
E
eu o meu Vasco, que há de fazer o milagre sem ser santo. O teu Vasco! Que se
há-de ele atrever contra o bispo cujo é? Do bispo ele como eu sou do mouro de
Granada. É estudante, mas não quer ser clérigo; e, em tendo idade que lhe não
possa pegar o tio, há-de ir para Salamanca. As covas de Salamanca! Apelo eu,
filha! Bruxo queres o moço? Bruxo! Que bruxo é meu tio, que tantos anos lá
esteve, e saiu curando de toda a moléstia e enfermidade com suas drogas e
mezinhas? Que por isso anda na corte com el-rei Pedro I que Deus guarde, e
nunca d’ao pé de si fora o quer, que outro físico o não trata! E que há de
fazer o teu Vasco no meu apertado caso?
Há
de partir logo para onde está el-rei Pedro, e dar-lhe de tudo parte, que nos
valha com a sua justiça, e venha açoitar este malvado bispo, e enforcar os seus
cónegos, os seus frades e portageiros. Bem simples sou eu; mas não sou tão
simples como tu, Gertrudes. Com que el-rei Pedro há-de atender a duas pobres
raparigas, e sobretudo a uma do povo como eu, para castigar fidalgos e senhores
que tudo podem, e sempre, desde que há sempre, fizeram o que quiseram? E
clérigos então! Se eu tal via na nossa terra, dizia que andava o mundo às
avessas. Pois hás-de ver, hás-de ver!, replicou a entusiasta Gertrudes, com um
acento que nem a mais exaltada malhada ou setembrista dos nossos dias saberia
imitar, – com uma firmeza e confiança que a fariam admitir sem mais provas na
república de... Em qualquer das repúblicas com que nos mimoseia de vez em
quando a polícia para maior glória sua e descanso nosso». In Almeida Garret, O Arco de
Santana, 1845-1850, Imprensa Nacional, Livraria Figueirinhas (1947-1ª edição) Porto
Editora, Porto, 2011, ISBN 978-972-004-980-3.
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