domingo, 22 de novembro de 2015

Bom-Senso e Bom-Gosto. Antero de Quental. «… confesso não me merecerem nem admiração nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V. ex.ª precisa menos cincoenta annos de edade, ou então mais cincoenta de reflexão»

Cortesia de wikipedia e jdact

Carta a António Feliciano Castilho (V)
«(…) O ideal quer dizer isto: desprezo das vaidades; amor desinteressado da verdade; preoccupação exclusiva do grande e do bom; desdem do futil, do convencional; boa fe; desinteresse; grandeza d'alma; simplicidade; nobreza; soberano bom gosto e soberanissimo bom senso..., tudo isto quer dizer esta palavra de cinco letras, ideal.
Por todos estes motivos ella é sobremaneira odiavel; ella é desprezivel por todas estas causas; e v. ex.ª tem toda a razão, chacoteando, bigodeando, pulverisando esse miseravel ideal.
Elle, com effeito, nada do que elle é ou do que vem d'elle, serve ou pode servir jamais para alguma cousa do que se procura na vida, do que nella procuram os homens graves, os homens serios, os homens de senso e gosto como v. ex.ª, que nada querem com ideaes ou com idêas, mas só com realidades e com tactos; para captar a admiração das turbas; o applauso das multidões; para formar um grande nome composto de pequeninas lettras; para merecer os encomios dos grammaticões e o assombro dos burguezes; para ser das academias; das arcadias; commendador; citado pelos brasileiros retirados do commercio; decorado pelos directores de collegio; o Tirteu dos mercieiros e um Homero constitucional.
Para isto é que não serve o ideal. E é por isso, pela sua absurda inutilidade, que v. ex.ª o apeia com tanta sem cerimonia do pedestal aonde, para o adorarem, o têm posto os loucos que nunca foram nada neste mundo, nem das academias nem do conselho de instrucção publica, um Christo, um Socrates, um Homero...
Por isso é que v. ex.ª faz muito bem em o destruir, a esse pobre diabo do ideal; de o pôr fóra de casa a bofetões; de o bannir das suas obras, que não haver por lá nem a mais leve sombra d'elle. Agradam a todos assim. Os versos de v. ex.ª não têm ideal, mas começam por letra pequena. As suas criticas não têm idêas, mas têm palavras quantas bastem para um diccionario de synonimos. Os seus poemas lyricos não são methaphysicos, não precisam d'uma excessiva attenção, de esforços de pensamento para se compreenderem, e têm a vantagem de não deixarem ver nem um só ideal. Nas suas obras todas ha uma falta tão completa d'essas incomprehensibilidades, que deve pôr muito á sua vontade os leitores que v. ex.ª têm no Brasil. V. ex.ª diz tudo quanto se pode dizer sem idêas, boa, excellente receita para não cahir nas nebulosidades do ideal. Os seus escriptos são optimos escriptos, menos as idêas: e é v. ex.ª um grande homem, menos o ideal.
Dante, que era um barbaro, e Shakspeare, que era um selvagem, é que rechearam as suas obras de ideal. Victor Hugo tambem cáe muito nesse defeito. V. ex.ª é que o tem sempre evitado cautelosamente, e por isso não é um barbaro como Dante, nem selvagem como Shakspeare, nem um máo poeta como Victor Hugo. Não é Dante, nem Shakspeare, nem Hugo, mas é amigo do sr. Viale, que falla latim como Mevio e Bavio.
Mas, ex.mo sr., será possivel viver sem idêas? Esta é que é a grande questão. Em Lisboa, no curso de lettras, na academia, no conselho superior, no gremio, nos saraus de v. ex.ª, dizem-me que sim, e que é mesmo uma condição para viver bem. Fóra de Lisboa, isto é, no resto do mundo, em Paris, Berlim, Londres, Turim, Goettingue, New-York, Boston, paizes mais desfavorecidos da sorte, na velha Grecia tambem e mesmo na Roma antiga, é que nunca poderam passar sem essas magnificas inutilidades. Ellas o muito que têm feito é servirem de entretenimento aos visionarios como Christo (um metaphysico bem nebuloso), como Socrates, como Çakia-Mouni, como Mahomet, como Confucio e outros sujeitos de nenhuma consideração social, que se entretinham fazendo systemas com ellas, e com os systemas religiões, e com as religiões povos, e com os povos civilisações, e com as civilisações codigos, leis, sentimentos, amores, paixões, crenças, a alma emfim da humanidade, cousa que se não vê nem rende, e é tambem inutil e incomprehensivel. Eis ahi o mais a que as idêas têm chegado. Creio que pouco mais ou nada mais têm feito do que isto.
Em Lisboa é que nem isto. Não sei se tem havido quem tente introduzil-as nessa capital. V. ex.ª é que eu tenho a certeza de que não era capaz d'essa má acção. Por isso Lisboa não cahe como cahiram Athenas e Roma, por causa das suas idêas, e Jerusalem e outras cidades infelizes, cujos poetas tiveram um amor demasiado ao ideal... Uma só cousa ficou d'ellas: uma memoria grande, honrosa, nobilissima. Cahiram, mas deram ao mundo um espectaculo raro, o espirito e a consciencia humana triumphando da matéria e brilhando no meio das ruinas como a chamma que se alimenta da destruição da lenha d'onde sahe e que a gerou. Eu não sei se v. ex.ª acha isto sensato e de bom gosto. Cuido que não. O que eu sei sómente é que isto é sublime...
Paro aqui, ex.mo sr. Muito tinha eu ainda que dizer: mas temo, no ardor do discurso, faltar ao respeito a v. ex.ª, aos seus cabellos brancos. Cuido mesmo que já me escapou uma ou outra phrase não tão reverente e tão lisongeira como eu desejára. Mas é que realmente não sei como hei de dizer, sem parecer ensinar, certas cousas elementares a um homem de sessenta annos; dizel-as eu com os meus vinte e cinco! V. ex.ª aturou-me em tempo no seu collegio do Portico, tinha eu ainda dez annos, e confesso que devo á sua muita paciencia o pouco francez que ainda hoje sei. Lembra-se, pois, da minha docilidade e adivinha quanto eu desejaria agora podel-o seguir humildemente nos seus preceitos e nos seus exemplos, em poesia e philosophia como outr'ora em grammatica franceza, na comprehensão das verdades eternas como em outro tempo no entendimento das fabulas de La Fontaine. Vejo, porem, com desgosto que temos muitas vezes de renegar aos vinte e cinco annos do culto das auctoridades dos dez; e que saber explicar bem Telemaco a crianças não é precisamente quanto basta para dar o direito de ensinar a homens o que sejam razão e gosto. Concluo d'aqui que a edade não a fazem os cabellos brancos, mas a madureza das idêas, o tino e a seriedade: e, neste ponto, os meus vinte e cinco annos têm-me as verduras de v. ex.ª convencido valerem pelo menos os seus sessenta. Posso pois fallar sem desacato. Levanto-me quando os cabellos brancos de v. ex.ª passam deante de mim. Mas o travesso cerebro que está debaixo e as garridas e pequeninas cousas, que sahem d'elle, confesso não me merecerem nem admiração nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V. ex.ª precisa menos cincoenta annos de edade, ou então mais cincoenta de reflexão.
É por estes motivos todos que lamento do fundo d'alma não me poder confessar, como desejava, de v. ex.ª.»
Coimbra, 2 de Novembro de 1865
Nem admirador nem respeitador
Anthero do Quental.

In Antero de Quental, Bom-Senso e Bom-Gosto, Carta ao Exmo Sr. António Feliciano Castilho, Inprenda da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1865, (livros de Lavado, Lisboa; Livraria da Viuva Moré), Pedro Saborano, the Project Gutenberg ebook, 2009, ISO 8859-15.

Cortesia de PGutenberg/JDACT