De profundis clamo ad te, domine
«(…) Pedro olha à sua volta. Está só. Assim aguardará a chegada de Álvaro
Gonçalves e Pero Coelho, que já tardam, parece-lhe. Só com os seus fantasmas.
Que mais sou eu, senão um fantasma que só pode ser rei mas já não pode ser
homem. Morto por dentro o homem, que o fantasma cumpra os deveres de el-rei,
que por todos há-de velar e a todos há-de fazer justiça, grandes e pequenos,
ricos e pobres, mais até a estes, que mais fracos são. Mas quem, pergunta Pedro
enquanto olha o seu próprio rosto reflectido na sombria superfície do vinho que
tem na taça, mas quem me fez justiça a mim, era eu infante e herdeiro do reino
e agravado e ferido pelo maior mal? Os que sujaram Inês com as suas línguas imundas,
aí andavam, ledos e folgados. Os que calaram o crime que se tramava, ficaram
mui postos vai seu sossego. E os que a mataram, com mão tão certa como a do
carrasco, esses, como os vi eu prazenteiros, comendo suas viandas, bebendo o
vinho de suas vinhas, fazendo boa maridança com suas mulheres e até cantando na
santa missa, como se fossem homens cristãos e não bestas-feras. Sim, e el-rei
também, el-rei Afonso de Portugal, meu santo
pai, era um deles, e o mais principal, pois foi sua a sentença.
As recordações excitam-no, fazem-lhe correr o sangue mais depressa e
subir-lhe à cabeça, como se para lá se tivesse mudado o coração. Assim foi,
assim foi, porém hoje Afonso já não reina em Portugal e as bestas-feras jazem
na masmorra à minha mercê e haverá de novo justiça, porque um rei-fantasma a
fará, sobre grandes e pequenos, ricos e pobres. Sobre os vivos e também sobre
os mortos. Roubaram-te de mim, Inês, mas não sabiam que assim mesmo te punham
para sempre em mim. Para sempre, até ao fim do mundo. Um fantasma dentro de um
fantasma, ambos num mundo de sombras, a recordar outro tempo em que viviam no
mundo dos homens e sentiam na pele o calor do Sol, o vento e as carícias que um
ao outro faziam. Ah, a lembrança da vez primeira. A lembrança da vez primeira,
temperada com a delícia do segredo, das coisas escondidas. Ao sair de Chaves,
noite ainda, vestido como se fosse para montaria, já Pedro faz galopar o seu
cavalo; javalis, cervos e lobos podem andar sem receio, que o Infante de
Portugal não pensa hoje neles. O dia nasce e cresce, o Sol vai alto, mas ele
não pára. Galopa em frente, sem se deter, salta regatos e cercas, pisa terras
de centeio e de vinha, não vê pastores nem rebanhos que se tresmalham
espavoridos à sua passagem. Não pára para comer não dá descanso aos que o
seguem, esgota a montada na corrida. Quer entrar na Galiza e respirar o mesmo
ar que ela respira, quer ver as muralhas de Monterrei, de que tem ciúmes porque
a cingem como num abraço protector.
Quando, por fim, os companheiros, poucos e de confiança, para que o
segredo fique bem seguro, avistam homens de armas ao longe (um raio de Sol fez
brilhar subitamente o aço de um arnês) e lhe pedem que sofreie o cavalo, que
seja prudente, ele não lhes dá ouvidos, antes incita o animal. E tem razão, a
sua ânsia não o enganou, é gente da mesnada dos Castro, vinda para saudá-lo e
dar-lhe escolta. O próprio Fernando vem à frente, de sorriso aberto. Tudo foi combinado
com grandes cautelas, mas ainda assim o jovem Castro quer ter uma derradeira
certeza, por isso a sua saudação é quase uma pergunta: Bem-vindo a terras de
Galiza, bem-vindo a Monterrei, senhor..., folgo que vosso pai vos haja
permitido esta visita... Pedro compreendeu e responde com uma alegria travessa:
Não o sabe ele, Fernando! Eu somente mandei dizer a el-rei que ia a Chaves por
mor de fazer justiça em seu nome, e essa era a minha tenção. Esta manhã, saí em
montaria para desenfadar e bem vejo agora que já não estou em Portugal... Enquanto
fala, aproxima o seu cavalo do de Fernando e baixa a voz mas não abandona o sorriso
nem a alegria: E aqui me tendes, como antes havíamos aprazado.
Depois, sentindo-se num sonho, cavalga ao lado de Fernando. Como num
sonho, avista Monterrei, o castelo aninhado no alto da sua colina, dominando
tudo em redor. Como num sonho atravessa o burgo, passa a barbacã, como num
sonho recebe as boas-vindas de Álvaro Castro. E é ainda como num sonho que se
ouve a si mesmo perguntar: E vossa irmã, dona Inês? Os ares de Galiza já a
curaram daquela triste melancolia que a roubou à corte de Portugal e ao serviço
da Infanta minha mulher? Ao que Fernando, com o sorriso ardiloso que Pedro já conhece,
responde: Ela mesma poderá dizer-vos. E dona Inês ali está, entrou
silenciosamente na sala enquanto eles falavam». In João Aguiar, Inês de Portugal,
pequenos Prazeres, Edições ASA, 1997, ISBN 972-41-1822-3.
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