De profundis clamo ad te, domine
«(…) A cama revolvida, os lençóis sulcados pelos corpos. O sereno
assombro das sensações passadas, o assombro de ter vivido momentos tais que só
os conhecia de os ouvir tenuemente sugeridos no canto de segréis e trovadores. Inês
está imóvel, deitada sobre as costas, com os olhos fechados e a boca a desenhar
um leve sorriso. Não há palavras que a descrevam, segréis e trovadores nenhuma
trova poderiam fazer que a retratasse. Um pano de linho fresco, a sua alvura
manchada pelo sangue da iniciação. Pedro olha-o, pega nele. Entre os dois, nada
é feio ou impuro. Pega nele, os seus dedos acariciam com ternura o sangue que o
linho embebeu. Dona Inês abre os olhos, surpreende-lhe a carícia. Esse pano, murmura
com suavidade, há-de sair daqui mui escondido, não poderá ser mostrado com risos
e cantos e folguedos, na manhã do meu primeiro dia de casada.
E se eu te disser, responde Pedro, que para mim esta vez foi também
como a vez primeira? Se te disser que fui aqui como donzel e não homem que já
conheceu mulher? Que aprendemos juntos o que hoje fizemos? Ah, palavras,
encontrar palavras... perdoa-me: não sou trovador, como el-rei meu avô. E eu,
diz-lhe dona Inês, não sou uma santa, como a senhora rainha tua avó. Olham-se
em deslumbramento. Abraçam-se de novo, agora não para o amor mas para a
ternura, para sentirem os dois corpos sem distância. E riem como adolescentes. Porém,
santo eu fui, afirma Pedro, ainda a rir, pois resisti tanto tempo. Mas agora,
ninguém pode separar-nos. Então, dona Inês fica séria. As palavras dele vieram
recordar-lhe que em torno daquele espaço encantado que ambos construíram há um
outro mundo, hostil, que os espreita. No sé como isso há-de ser. Hoje temos
este segredo, é verdade. Os segredos têm vida curta. Ao ver a interrogação nos
olhos de Pedro, acrescenta: murmura-se na corte e a Infanta já me fala de outra
guisa.
Dona Inês suspira e diz ainda: não lhe quero mal, antes entendo bem o
seu malquerer. Mas Pedro recusa-se a deixar que o mundo exterior os agrida. Ela
é minha mulher, é infanta, há-de ser rainha. Outras têm pior sorte, outras poderão
queixar-se com mais razões. Pega novamente no pano manchado de sangue, leva-o
ao peito como se fosse uma relíquia. Conheço eu uma, dona Inês Castro, filhada
por um infante casado com outra dona. Dona Inês não se lamenta. Mesmo quando te
souber na alcova da Infanta. Eu havia de querer-me bem e desejar o teu corpo
ainda que não foras quem és, o futuro rei de Portugal e do Algarve... Num
movimento súbito, deita-se sobre o corpo de Pedro e termina a frase com a boca
roçando os lábios dele: e quem sabe, de Leão e Castela. Julgo na sua voz o
alerta. Confusamente, suspeita que já não estão sós, por as vozes do mundo
exterior, e com elas as suas paixões, entraram na alcova trazidas pelas
palavras de dona Inês. Isso dizem-no os teus irmãos. Que é meu direito, se o meu
sobrinho Pedro morrer. Pensas então como eles? Dona Inês não afasta o rosto,
quer que ele a sinta bem perto.
Os meus irmãos, responde, amam-te como príncipe e senhor, querem-te rei
de Portugal, Leão e Castela, e as bandeiras de Aragão, Valência e Barcelona
atrás da tua. E tu? Mas agora, dona Inês não quer mais nada a afastá-los, nada
que possa quebrar o encanto. Abandona o leito, envolvida num lençol. Vai até à
mesa onde estão os castiçais, o pichel
de vinho. Depois, sentindo-se envolvida pelo olhar de Pedro, regressa para
junto dele e pega, por sua vez, no pano manchado de sangue. Tu és o meu rei. E
esta, a minha bandeira. Não quero outro rei nem outra bandeira, já o disse, eu
havia de querer-te ainda que não foras quem és. Chego a desejá-lo, pois assim seria
mais tua. Há um silêncio. Enfim, Pedro solta um longo suspiro. É bom
saber que desejarias o meu corpo ainda que eu fora vilão de beetria ou pastor
de rebanho perdido nas serras. Mas eu, não posso nem quero esquecer quem sou.
Quando for rei, isso bastará para encher os meus dias de cuidados e trabalhos.
Uma só perfeição herdei da minha avó..., a que foi santa, quero dizer. Ela
tinha a gente do povo como filhos seus. Eu também. Ser rei é ser pai. Porém um
pai com tantos filhos, nunca repousa nem dorme a noite inteira. Será então
pecado querer um pouco de felicidade? Eu estou aqui, responde dona Inês.
Senta-se na beira da cama, ao seu lado. Eu estou aqui. Não és feliz? Pedro
continua sério, o rosto virado para o tecto. Aqui, contigo, sou feliz.
Escondidos na Galiza, que é a terra que te viu nascer. Mas em Portugal, na
corte..., quando entro na alcova da minha tão virtuosa esposa, hei míster rezar
e dizer em voz baixa que sou infante, que todos os meus irmãos morreram e
Portugal precisa de outros herdeiros. Dona Inês não se esqueceu, demais conhece
os obstáculos que se levantam entre os dois. Não por o Infante se prender a outra
que não a sua mulher legítima, mas porque esta prisão, este amor, ambos querem
que seja exclusivo, em desafio (ela bem o sabe e de o saber sente-se
entontecido e assustada) das leis de Deus, das leis do reino, do querer de
el-rei Afonso e da rainha e dos grandes e pequenos. Todo esse mar de perigo e
de inimizade a submerge por instantes, a ponto de murmurar: Pedro. Esta nossa
afeição é condenada. Nunca!» In João Aguiar, Inês de Portugal, pequenos
Prazeres, Edições ASA, 1997, ISBN 972-41-1822-3.
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