O calígrafo
desfeito
«(…)
Apesar da aparência, o caligrama não diz, em forma de pássaro, de flor ou de
chuva: isto é uma pomba, uma flor, uma
chuvarada que cai; desde que se põe a dizê-lo, desde que as palavras se
põem a falar e a fornecer um sentido, é que o pássaro já voou e que a chuva
secou. Para quem o vê, o caligrama não diz, não pode ainda dizer: isto é uma
flor, isto é um pássaro; está ainda demasiadamente preso na forma,
demasiadamente sujeito à representação por semelhança para formular uma tal
afirmação. E quando alguém o lê, a frase que se decifra (isto é uma pomba, isto é uma chuvarada), não é um pássaro, não é
mais uma chuvarada. Por astúcia ou impotência, pouco importa, o caligrama não
diz e não representa nunca no mesmo momento; essa mesma coisa que se vê e se lê
é morta na visão, mascarada na leitura.
Magritte
redistribuiu no espaço o texto e a imagem; cada um retoma o seu lugar; mas não
sem reter alguma coisa do esquivo que é próprio ao caligrama. A forma desenhada
do cachimbo expulsa todo texto explicativo ou designativo, tanto é
reconhecível; o seu esquematismo escolar diz muito explicitamente: você vê tão bem o cachimbo que sou, que
seria ridículo para mim dispor minhas linhas de modo a lhes fazer escrever: isto
é um cachimbo. As palavras, decerto, me desenhariam menos bem do que eu me
represento. E, por sua vez, o texto, nesse desenho caprichado que
representa uma escrita, prescreve: tome-me por aquilo que manifestamente sou:
letras colocadas umas ao lado das outras, com essa disposição e essa forma que
facilitam a leitura, asseguram o reconhecimento e se abrem mesmo ao aluno mais
balbuciante; não pretendo arredondar-me depois me estirar para tornar-me
primeiro o fornilho, depois o tubo de um cachimbo: não sou nada além das
palavras que você está lendo.
No
caligrama jogavam, um contra o outro, um não
dizer ainda e um não mais representar.
No Cachimbo
de Magritte, o lugar de onde nascem essas negações e o ponto sobre o
qual se aplicam são completamente diferentes. O não dizer ainda da forma
voltou, não exactamente como uma afirmação, mas como uma dupla posição: de um
lado, no alto, a forma bem lisa, bem visível, bem muda, e cuja evidência deixa
altivamente, ironicamente, o texto dizer o que quer, qualquer coisa; e de
outro, em baixo, o texto, espalhado segundo a sua lei intrínseca, afirma a sua
própria autonomia diante daquilo que ele nomeia. A redundância do caligrama
repousava sobre uma relação de exclusão: em Magritte, a distância dos dois
elementos, a ausência de letras no seu desenho, a negação expressa no texto,
manifestam afirmativamente duas posições.
Mas
temo ter negligenciado aquilo que é talvez essencial ao Cachimbo de Magritte.
Fiz como se o texto dissesse: Eu (esse conjunto de palavras que você está
lendo) não sou um cachimbo; me comportei como se houvesse duas posições
simultâneas e bem separadas uma da outra, no interior do mesmo espaço: a da figura e a do texto. Mas omiti que,
de um ao outro, um liame subtil, instável, ao mesmo tempo insistente e incerto,
estava assinalado. E estava assinalado pela palavra isto. É preciso,
portanto, admitir entre a figura e o texto toda uma série de cruzamentos; ou,
antes, de um ao outro, ataques lançados, flechas atiradas contra o alvo
adverso, trabalhos que solapam e destroem, golpes de lança e feridas, uma
batalha. Por exemplo: isto (este desenho que vocês estão
vendo, cuja forma sem dúvida reconhecem e do qual acabo de desatar os liames
caligráficos) não é (não é substancialmente ligado a..., não é constituído
por..., não recobre a mesma matéria que...) um cachimbo (quer dizer, essa palavra pertencente à sua linguagem,
feita de sonoridades que pode pronunciar-se e cujas letras que lê neste momento
traduzem). Isto não é um cachimbo pode, portanto, ser lido assim: mas, ao mesmo
tempo, esse mesmo texto enuncia uma coisa completamente diferente: isto
(este enunciado que você vê se dispôr sob seus olhos numa linha de elementos
descontínuos, e do qual isto é ao mesmo tempo o designante e a primeira
palavra) não é (não poderia equivaler nem se substituir a..., não
poderia representar adequadamente...) um
cachimbo (um desses objectos que você pode ver lá, acima do texto, uma figura
possível, intercambiável, anónima, portanto inacessível a qualquer nome).
Então,
é preciso ler: ora, no total, aparece facilmente que o enunciado de Magritte é
negado pela imediata e recíproca dependência do desenho do cachimbo e do texto
por meio do qual se pode nomear esse mesmo cachimbo. Designar e desenhar não
se superpõem, salvo no jogo caligráfico que ronda por trás do conjunto e que é
conjurado ao mesmo tempo pelo texto, pelo desenho e por sua actual separação.
Daí a terceira função do enunciado. Isto (este conjunto constituído por
um cachimbo em estilo caligráfico e por um texto desenhado) não é
(é incompatível com...) um cachimbo (este
elemento misto que depende ao mesmo tempo do discurso e da imagem, e cujo jogo,
verbal e visual, do caligrama, queria fazer surgir o ambíguo ser)». In
Michel Foucault, Isto Não é Um Cachimbo, Editora Paz e Terra, 1973, tradução de
Jorge Coli, 1989/2004, ISBN 978-857-753-031-1.
Cortesia
EPTerra/JDACT