«(…) Agravam-me a honra e
mancham-me a memória, e eu sinto-me forçado, com as parcas forças que me restam,
a escrever as apologias que me deixem ao abrigo do opróbrio e da condenação injusta.
Enquanto um sopro de vida me animar o corpo, tudo farei para que o nome do marquês
de Pombal não seja arrastado na lama como se de criminoso comum se tratasse.
Sei que as decisões que tomei e as ordens que dei fizeram com que eu tivesse de
viver até ao fim dos meus dias cercado de inimigos. Conheço-lhes os nomes, os rostos,
sei onde moram, que amantes têm, que vantagens tiraram da minha protecção e, acima
de tudo, tenho memória bastante para nunca os esquecer nem lhes perdoar o mal que
me fizeram. Se dissesse o contrário, nesta hora em que as grandes contas se acertam,
mentiria a mim próprio e a Deus, que na sua infinita sabedoria sabe que as minhas
qualidades suplantam os meus defeitos e pecados. Não me arrependo de ter agido como
sempre agi, pois sempre estive bem ciente de ser esse o preço que paga quem genuinamente
governa, não se limitando a correr com o vento pelas costas.
Eu corri contra o vento das
inércias e dos medos antigos, arregacei as mangas e corri os riscos que deve correr
um verdadeiro homem de Estado. Eis a razão por que entrei agora, nesta avançada
e penosa idade, no impiedoso Inverno da minha vida, alquebrado pelas mazelas do
corpo e pelos protestos de uma alma ferida pelos insultos e ofensas nascidos com
a Viradeira. À voz que me vem cá de dentro, do fundo de mim, eu respondo
com a franqueza de alma que me leva a dizer: em muita coisa terei falhado, feito
imperfeito juízo, mas nunca ao ponto de ter hoje como inimigos jurados aqueles que
antes da inclemência deste Inverno me aplaudiam, adulavam e enriqueciam à minha
custa.
Fala do Cavaleiro de Oliveira
Foi com enorme e justificada
satisfação que recebi no exílio a notícia do afastamento do cargo de Sebastião
José, meu carrasco em vida, responsável pela minha morte em efígie num público auto-de-fé.
Afastado o déspota, ainda acreditei, mesmo doente e na penúria, que me seria possível
retornar a Lisboa e servir sua majestade dona Maria I, que tanto admiro e venero.
Mas esse superior desígnio acabou por não ser atendido nem cumprido. Eu e Sebastião
José conhecemo-nos na legação diplomática portuguesa em Viena de Áustria, onde ambos
tínhamos missões de Estado para cumprir. Prontamente antipatizámos um com o outro.
Ele fazia diligências para, sendo plebeu de origem, se conseguir casar com uma nobre
de alta estirpe. Eu, pelo contrário, rendido aos encantos da libertinagem e não
sendo como ele um moralista retrógrado numa Europa que evoluía também nos costumes,
seduzia mulheres e conquistava corações, nunca tendo deixado por isso ficar mal
o nome de Portugal.
Bem pelo contrário. Sebastião
José decidiu perseguir-me a partir dessa altura, informando Lisboa acerca de dívidas
de jogo e alegadas imposturas que me eram atribuídas por força da inveja e da
mesquinhez humanas. Mas a verdade é que essas intrigas fizeram o seu caminho e
eu nunca mais pude regressar à minha querida Lisboa, durante quase quarenta anos.
Foi como se várias vezes tivesse morrido em vida. Em países como a Itália ou a Holanda
escrevi livros, tornei-me livre-pensador tornei-me protestante, fui reconhecido
e apreciado e nunca deixei de me render ao encanto das mais belas mulheres. Sebastião
José, já com o título de marquês de Pombal, nunca deixou de me seguir e perseguir
à distância, através da sua rede de espiões e esbirros diplomáticos, certificando-se
de que eu não teria condições para regressar a Portugal.
Convertido ao luteranismo, fui uma das vozes que se ergueram para atribuir
as causas profundas do terramoto de 1 de Novembro de 1755 aos erros de políticos como Sebastião
José, aos seus abusos e formas várias de desrespeito pela dignidade humana. Paguei
o preço doloroso da coragem que tive ao ver-me condenado pela Inquisição (maldita) a ser queimado em efígie juntamente
com o padre Gabriel Malagrida, esse de corpo inteiro, eu só na dor de me
saber eterno exilado e apátrida. Nunca entre mim e Pombal houve lugar para o perdão
ou para o diálogo, embora muitas vezes lhe tenha escrito e ele tenha deixado sem
resposta as minhas bem intencionadas missivas, sempre abertas a uma possível
reconciliação, que só teria sido vantajosa para Portugal, tendo em conta os meus
contactos privilegiados junto das chancelarias das grandes capitais europeias.
Porém, quem triunfou longe de Portugal, com o beneplácito do marquês, foi Luís António
Verney, Ribeiro Sanches e Luís Cunha, ficando-me reservada a vala comum do esquecimento».
In
José Jorge Letria, Mal por Mal, Antes Pombal, Uma Memória de Sebastião J. Carvalho
Melo, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-005-8.
Mal por mal, antes Pombal, expressão
popular usada pelo povo de Lisboa quando o marquês de Angeja, que substituiu
Pombal, mandou suspender todas as obras de recuperação da cidade por ele
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