«(…) A minha morte poderá ser a porta pela qual hoje muitos querem entrar,
não na História, mas na terra que um dia os baniu, mais por crimes cometidos do
que pelo perigo das suas ideias reformadoras. Foi assim com este Cavaleiro
de Oliveira, que bem conheci como diplomata em Viena de Áustria e que desde
muito cedo se revelou um libertino sem escrúpulos, capaz de tudo fazer para se adornar
com a fama e a fortuna alheias, manchando o nome de Portugal com promessas eternamente
incumpridas. Sei de quem falo e do que falo e é com estes tons carregados que a
minha memória o recorda, pavoneando-se pelos salões sempre em busca de presas fáceis
para os seus estratagemas de caçador de fortunas alheias. Pessoas assim só servem
para denegrir o nome de Portugal, para o manchar noutras cortes e noutras
terras, disse-lho como quem lavra uma sentença, e nem grandeza moral teve para procurar
o desagravo num duelo em que, por certo, a razão e a justiça haviam de
prevalecer.
Nunca Portugal precisou
de gente desta índole para fazer as verdadeiras reformas de que carecia com a finalidade
de se tornar grande entre as nações europeias. Imagino-o agora, decadente e amargurado,
a empoar-se num qualquer lupanar de rua íngreme, lançado ao abandono por quem não
suporta a sua decadência física e moral, na ilusão de que a minha morte representará
a passadeira estendida para um regresso que nunca ocorrerá. Sei bem como a inveja
de quem me cobiçou o poder e a influência foi a hidra que nunca parou de se enrodilhar
nas pernas de quantos, com astúcia e ambição, me adulavam e seguiam, sempre na esperança
de que por fim soasse a hora da minha desgraça. E essa hora chegou, colocando em
alvoroço nos gabinetes, com sanha de verdadeiros carrascos, aqueles que ainda há
poucos meses serviam diligentemente sob as minhas ordens e de tudo me informavam
com copiosa imaginação, na esperança de conquistarem um lugar que a intriga ajudasse
a vagar.
Restasse-me ainda tempo para
semelhante tarefa e havia de escrever um extenso tratado sobre a baixeza moral
e a ambição sem limites dos cortesãos deste reino de Portugal e de todos os reinos,
que não é afinal muito diversa a condição dos humanos de nação para nação. Aprendo
com o passar dos anos esta lição que nunca deixei de ter presente, para o melhor
e para o pior. Se é preciso ter um culpado, aqui têm agora o culpado. E em resposta
à minha voz interior, que nunca desiste de me confrontar com as suas interrogações,
eu respondo apenas, bem seguro do que digo: eis o culpado, o que reconstruiu Lisboa
depois do terramoto, o que manteve o imenso Brasil longe da cobiça dos
holandeses, o que reorganizou o exército e impôs o respeito às chancelarias estrangeiras
e que converteu o comércio e a indústria desta terra em fonte de riqueza para muita
gente.
Mas talvez não seja tempo
de lembrar tais méritos, se é que assim podem ser entendidos, pois um culpado é
sempre um culpado, e mais culpado se torna ainda quando é tratado nas ruas como
um algoz da liberdade do seu povo. Mas que liberdade é essa que se ergue sobre
o pedestal da miséria, do atraso, da ignorância, da crendice e da superstição,
da subserviência e do medo? Se é essa liberdade que agora festejam nas ruas,
mais avisado será baptizarem-na com outro nome. À íntima voz que me interroga a
cada passo, respondo com esta breve reflexão: se para os novos arautos do poder
eu sou o cruel dragão que a rainha escorraçou, que não descansem até que se extingam
de vez as labaredas que a pobre criatura lançava pelas narinas ofegantes. O certo
é que com todas estas maquinações que tão severamente me visam conseguiram roubar-me
o ânimo até para manter em dia a correspondência com os meus filhos e com os
amigos que me ficaram leais e dedicados, mesmo estando cientes dos riscos que essa
lealdade e dedicação podem representar. E que fique registado nestas páginas que
não temo o julgamento de nenhum deles, pois todos em consciência sabem que
nunca deixei de colocar acima do meu interesse pessoal o do reino, o do meu rei
e o do nosso Portugal.
A todos continuo a dedicar a ternura de que são merecedores, e se algo prezo
acima de todos os outros valores e virtudes é a honra do nome que lhes deixo para
ser lembrado e respeitado. Quem disso me quiser privar, de tudo me privará,
pois será como se me roubasse a própria alma, como se voltasse a fazer tremer debaixo
dos meus pés e no fundo do meu ser a terra toda, como aconteceu naquele trágico
dia primeiro de Novembro de 1755 em que
Deus se esqueceu da devoção deste povo e o condenou a um tal martírio que toda a
Europa se ajoelhou, em sobressalto, para rezar pela salvação da sua alma». In
José Jorge Letria, Mal por Mal, Antes Pombal, Uma Memória de Sebastião J. Carvalho
Melo, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-005-8.
Mal por mal, antes Pombal, expressão
popular usada pelo povo de Lisboa quando o marquês de Angeja, que substituiu
Pombal, mandou suspender todas as obras de recuperação da cidade por ele
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