sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Mal por Mal, antes Pombal. José Jorge Letria. «… eis o culpado, o que reconstruiu Lisboa depois do terramoto, o que manteve o imenso Brasil longe da cobiça dos holandeses, o que reorganizou o exército e impôs o respeito às chancelarias estrangeiras…»

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«(…) A minha morte poderá ser a porta pela qual hoje muitos querem entrar, não na História, mas na terra que um dia os baniu, mais por crimes cometidos do que pelo perigo das suas ideias reformadoras. Foi assim com este Cavaleiro de Oliveira, que bem conheci como diplomata em Viena de Áustria e que desde muito cedo se revelou um libertino sem escrúpulos, capaz de tudo fazer para se adornar com a fama e a fortuna alheias, manchando o nome de Portugal com promessas eternamente incumpridas. Sei de quem falo e do que falo e é com estes tons carregados que a minha memória o recorda, pavoneando-se pelos salões sempre em busca de presas fáceis para os seus estratagemas de caçador de fortunas alheias. Pessoas assim só servem para denegrir o nome de Portugal, para o manchar noutras cortes e noutras terras, disse-lho como quem lavra uma sentença, e nem grandeza moral teve para procurar o desagravo num duelo em que, por certo, a razão e a justiça haviam de prevalecer.
Nunca Portugal precisou de gente desta índole para fazer as verdadeiras reformas de que carecia com a finalidade de se tornar grande entre as nações europeias. Imagino-o agora, decadente e amargurado, a empoar-se num qualquer lupanar de rua íngreme, lançado ao abandono por quem não suporta a sua decadência física e moral, na ilusão de que a minha morte representará a passadeira estendida para um regresso que nunca ocorrerá. Sei bem como a inveja de quem me cobiçou o poder e a influência foi a hidra que nunca parou de se enrodilhar nas pernas de quantos, com astúcia e ambição, me adulavam e seguiam, sempre na esperança de que por fim soasse a hora da minha desgraça. E essa hora chegou, colocando em alvoroço nos gabinetes, com sanha de verdadeiros carrascos, aqueles que ainda há poucos meses serviam diligentemente sob as minhas ordens e de tudo me informavam com copiosa imaginação, na esperança de conquistarem um lugar que a intriga ajudasse a vagar.
Restasse-me ainda tempo para semelhante tarefa e havia de escrever um extenso tratado sobre a baixeza moral e a ambição sem limites dos cortesãos deste reino de Portugal e de todos os reinos, que não é afinal muito diversa a condição dos humanos de nação para nação. Aprendo com o passar dos anos esta lição que nunca deixei de ter presente, para o melhor e para o pior. Se é preciso ter um culpado, aqui têm agora o culpado. E em resposta à minha voz interior, que nunca desiste de me confrontar com as suas interrogações, eu respondo apenas, bem seguro do que digo: eis o culpado, o que reconstruiu Lisboa depois do terramoto, o que manteve o imenso Brasil longe da cobiça dos holandeses, o que reorganizou o exército e impôs o respeito às chancelarias estrangeiras e que converteu o comércio e a indústria desta terra em fonte de riqueza para muita gente.
Mas talvez não seja tempo de lembrar tais méritos, se é que assim podem ser entendidos, pois um culpado é sempre um culpado, e mais culpado se torna ainda quando é tratado nas ruas como um algoz da liberdade do seu povo. Mas que liberdade é essa que se ergue sobre o pedestal da miséria, do atraso, da ignorância, da crendice e da superstição, da subserviência e do medo? Se é essa liberdade que agora festejam nas ruas, mais avisado será baptizarem-na com outro nome. À íntima voz que me interroga a cada passo, respondo com esta breve reflexão: se para os novos arautos do poder eu sou o cruel dragão que a rainha escorraçou, que não descansem até que se extingam de vez as labaredas que a pobre criatura lançava pelas narinas ofegantes. O certo é que com todas estas maquinações que tão severamente me visam conseguiram roubar-me o ânimo até para manter em dia a correspondência com os meus filhos e com os amigos que me ficaram leais e dedicados, mesmo estando cientes dos riscos que essa lealdade e dedicação podem representar. E que fique registado nestas páginas que não temo o julgamento de nenhum deles, pois todos em consciência sabem que nunca deixei de colocar acima do meu interesse pessoal o do reino, o do meu rei e o do nosso Portugal.
A todos continuo a dedicar a ternura de que são merecedores, e se algo prezo acima de todos os outros valores e virtudes é a honra do nome que lhes deixo para ser lembrado e respeitado. Quem disso me quiser privar, de tudo me privará, pois será como se me roubasse a própria alma, como se voltasse a fazer tremer debaixo dos meus pés e no fundo do meu ser a terra toda, como aconteceu naquele trágico dia primeiro de Novembro de 1755 em que Deus se esqueceu da devoção deste povo e o condenou a um tal martírio que toda a Europa se ajoelhou, em sobressalto, para rezar pela salvação da sua alma». In José Jorge Letria, Mal por Mal, Antes Pombal, Uma Memória de Sebastião J. Carvalho Melo, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-005-8.

Mal por mal, antes Pombal, expressão popular usada pelo povo de Lisboa quando o marquês de Angeja, que substituiu Pombal, mandou suspender todas as obras de recuperação da cidade por ele iniciadas

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