Práticas de caridade e assistência nos alvores da Modernidade.
Contextos sociais e políticos
«(…) Os alvarás de 1544 e 1558 foram acompanhados
de um reforço da acção policiadora dos oficiais régios, supostamente a pedido do
povo, que viram a sua autoridade fortalecida para mais eficazmente controlarem os
vadios e os mendigos. Juízes, meirinhos e alcaides recebiam ordens para inspeccionar
quinzenalmente as estalagens, hospitais e albergarias, mandando prender e julgar
sumariamente os suspeitos, mas era às câmaras que competia examinar os pedintes
e conceder autorização aos que pretendessem mendigar fora da área de
residência; e em Lisboa, uma rede de funcionários e informadores, igualmente
criada em 1544, deveria vigiar os
bairros, cada um dos pedintes e todos os locais que os pudessem acolher. A vida
para os estrangeiros, sobretudo para os que não tinham ofício, era progressivamente
dificultada. Procurando tornar as leis mais eficazes, o diploma de 1604, intitulado sobre os pobres que hão-de pedir, mudava de estratégia e penalizava
os corregedores, provedores de comarca e ouvidores que não fossem diligentes no
cumprimento das suas responsabilidades persecutórias em relação aos mendigos:
uma vez mais é notória a coincidência cronológica e a similitude de conteúdos
entre as leis inglesas e as portuguesas, neste caso entre a inglesa de 1598 e esta portuguesa de 1604. Não era a religião nem a distância
que marcavam a diferença entre os países no que concerne às políticas contra a mendicidade
e a vagabundagem.
Desde a Lei
das Sesmarias que as autoridades caminharam no sentido de categorizar a
pobreza em três grupos, que se sabe não terem sido estáveis nem estanques: os
falsos pobres, que deviam ser condenados e expulsos das comunidades; os pobres,
residentes ou não, autorizados a mendigar por um tempo definido, e, finalmente,
os pobres que poderiam aspirar às maiores fatias dos fundos das instituições
assistenciais desde que não mendigassem. Mendigos não encartados e vagabundos, no
primeiro caso, não encaixavam nos parâmetros que definiam o pobre merecedor. A crer
nos textos coevos, seria um corpo numeroso, que, à partida, tinha o acesso vedado
aos recursos formais da assistência, à excepção dos concedidos nos hospitais,
onde só deveriam entrar em caso de doença efectiva, o documento que em 1502 o rei Manuel I dirigiu à Câmara de
Évora, proibindo-a de acolher no Hospital do Espírito Santo aqueles que o quisessem
tornar como hospício pobres sãos que bem podem
trabalhar, é elucidativo a este respeito, nas prisões e, eventualmente, na
forma de cartas de guia. Já do lado dos merecedores, onde estavam incluídos os
doentes, as crianças e os velhos desamparados, o segundo conjunto de pobres podia
acumular a mendicidade com algum tipo de ajuda providenciada por uma qualquer
instituição, quase sempre com carácter ocasional; quanto ao terceiro grupo, estava
sujeito a princípios de elegibilidade mais rígidos, que podiam variar de acordo
com uma multiplicidade de circunstâncias localmente determinadas. Nenhum destes
grupos incluía os ciganos: de facto, só na assistência em contexto prisional se
encontra a referência a alguns ciganos, mesmo assim com uma expressão residual.
A questão dos ciganos
é complexa. Para a economia deste texto, basta lembrar que terão provavelmente entrado
em Portugal ao mesmo tempo que em Castela, ou seja, nos finais do século XV, precisamente
quando, um pouco por toda a Europa, as autoridades se encontravam envolvidas numa
batalha violenta contra o nomadismo, que os discursos oficiais apelidavam de vagabundagem
e vadiagem. Vivendo como vadios, os ciganos foram punidos como tal; a estigmatização
social contra o modo de vida que os caracterizava já estava construída e interiorizada.
O que houve foi, portanto, um processo de agregação e não de criação de uma nova
prática, etnicamente direcionada». In Laurinda Abreu, O Poder e os Pobres, As
Dinâmicas Políticas e Sociais da Pobreza e da Assistência em Portugal, Séculos
XVI-XVIII, Gradiva, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-616-596-3.
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