quinta-feira, 12 de novembro de 2015

O Poder e os Pobres. Laurinda Abreu. «Procurando tornar as leis mais eficazes, o diploma de 1604, intitulado ‘sobre os pobres que hão-de pedir’, mudava de estratégia e penalizava os corregedores, provedores de comarca e ouvidores que não fossem diligentes…»

jdact

Práticas de caridade e assistência nos alvores da Modernidade. Contextos sociais e políticos
«(…) Os alvarás de 1544 e 1558 foram acompanhados de um reforço da acção policiadora dos oficiais régios, supostamente a pedido do povo, que viram a sua autoridade fortalecida para mais eficazmente controlarem os vadios e os mendigos. Juízes, meirinhos e alcaides recebiam ordens para inspeccionar quinzenalmente as estalagens, hospitais e albergarias, mandando prender e julgar sumariamente os suspeitos, mas era às câmaras que competia examinar os pedintes e conceder autorização aos que pretendessem mendigar fora da área de residência; e em Lisboa, uma rede de funcionários e informadores, igualmente criada em 1544, deveria vigiar os bairros, cada um dos pedintes e todos os locais que os pudessem acolher. A vida para os estrangeiros, sobretudo para os que não tinham ofício, era progressivamente dificultada. Procurando tornar as leis mais eficazes, o diploma de 1604, intitulado sobre os pobres que hão-de pedir, mudava de estratégia e penalizava os corregedores, provedores de comarca e ouvidores que não fossem diligentes no cumprimento das suas responsabilidades persecutórias em relação aos mendigos: uma vez mais é notória a coincidência cronológica e a similitude de conteúdos entre as leis inglesas e as portuguesas, neste caso entre a inglesa de 1598 e esta portuguesa de 1604. Não era a religião nem a distância que marcavam a diferença entre os países no que concerne às políticas contra a mendicidade e a vagabundagem.
Desde a Lei das Sesmarias que as autoridades caminharam no sentido de categorizar a pobreza em três grupos, que se sabe não terem sido estáveis nem estanques: os falsos pobres, que deviam ser condenados e expulsos das comunidades; os pobres, residentes ou não, autorizados a mendigar por um tempo definido, e, finalmente, os pobres que poderiam aspirar às maiores fatias dos fundos das instituições assistenciais desde que não mendigassem. Mendigos não encartados e vagabundos, no primeiro caso, não encaixavam nos parâmetros que definiam o pobre merecedor. A crer nos textos coevos, seria um corpo numeroso, que, à partida, tinha o acesso vedado aos recursos formais da assistência, à excepção dos concedidos nos hospitais, onde só deveriam entrar em caso de doença efectiva, o documento que em 1502 o rei Manuel I dirigiu à Câmara de Évora, proibindo-a de acolher no Hospital do Espírito Santo aqueles que o quisessem tornar como hospício pobres sãos que bem podem trabalhar, é elucidativo a este respeito, nas prisões e, eventualmente, na forma de cartas de guia. Já do lado dos merecedores, onde estavam incluídos os doentes, as crianças e os velhos desamparados, o segundo conjunto de pobres podia acumular a mendicidade com algum tipo de ajuda providenciada por uma qualquer instituição, quase sempre com carácter ocasional; quanto ao terceiro grupo, estava sujeito a princípios de elegibilidade mais rígidos, que podiam variar de acordo com uma multiplicidade de circunstâncias localmente determinadas. Nenhum destes grupos incluía os ciganos: de facto, só na assistência em contexto prisional se encontra a referência a alguns ciganos, mesmo assim com uma expressão residual.
A questão dos ciganos é complexa. Para a economia deste texto, basta lembrar que terão provavelmente entrado em Portugal ao mesmo tempo que em Castela, ou seja, nos finais do século XV, precisamente quando, um pouco por toda a Europa, as autoridades se encontravam envolvidas numa batalha violenta contra o nomadismo, que os discursos oficiais apelidavam de vagabundagem e vadiagem. Vivendo como vadios, os ciganos foram punidos como tal; a estigmatização social contra o modo de vida que os caracterizava já estava construída e interiorizada. O que houve foi, portanto, um processo de agregação e não de criação de uma nova prática, etnicamente direcionada». In Laurinda Abreu, O Poder e os Pobres, As Dinâmicas Políticas e Sociais da Pobreza e da Assistência em Portugal, Séculos XVI-XVIII, Gradiva, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-616-596-3.
                                                                                                                
Cortesia de Gradiva/JDACT