Não há melhor fragata do que um
livro para nos levar a terras distantes. In E. Dickinson
«(…) Alberto Reis compreendeu que já não ia saborear o chá feito pela senhora
Ofélia. Em nenhuma circunstância isso seria possível, depois dos gritos de
impropérios e dos empurrões pelas costas para sair do quarto. E de nada lhe
adiantou tentar explicar que se tratara de um mal-entendido, que apenas fora
movido pela curiosidade de tais adereços masculinos a marcar presença, na
privacidade de um quarto de mulher, imprudência que não se comparava, se fosse
esse o caso, à observação imoral das roupas interiores, íntimas e femininas.
Não que fosse um sacrifício se o desejo lhe implorasse tais inspecções, mas
nunca estaria nos seus planos profissionais. E, além disso, sentia uma atracção
inexplicável pela senhora Ofélia. Atraía-o toda aquela sofisticação à volta
dela. Na verdade, Alberto Reis estava, a entrar numa nova fase da viuvez, e
esse facto explicava todo o interesse que tinha pela senhora. Nas noites de tertúlia,
encostado à porta do seu apartamento no rés-do-chão a escutar os passos dos
convidados que subiam ao primeiro andar, Alberto Reis sentia mais do que nunca
o poder detestável da solidão a sacrificá-lo e a magoá-lo nos sentimentos.
Para um homem sozinho
pouco mais restava do que andar pela casa a captar restos de músicas e
cantorias, embora outros divertimentos supusesse pelas gargalhadas que ofendiam
a sua condição de excluído. Desde esse desagradável incidente, Alberto Reis
perdeu totalmente a confiança da senhora Ofélia, que nunca mais lhe dirigiu a
palavra. Assim que ela o viu no outro lado da rua a olhar na sua direcção, correu
bruscamente os cortinados da janela da sala. Os olhos de Alberto Reis mudaram
de direcção e desceram até à porta do prédio. Não conseguiu evitar uma expressão
de mágoa pela indiferença da senhora Ofélia. No entanto, ainda acreditava que poderia
conquistar algum espaço na vida dela. Nada estava arquivado, embora o castigo
que ela lhe impusera fosse um pesadelo cruel para um solitário viúvo que lutava
por algum afecto e atenção.
Alberto Reis correu ao encontro
do carteiro quando o viu aproximar-se da entrada do prédio. Este impulso era mais
da ordem da curiosidade e do prazer de alguns minutos de conversa do que por qualquer
outro motivo que se prendesse com notícias de familiares. Desde o falecimento dos
pais que deixara de receber correspondência, exceptuando uma ou outra notícia
longínqua de algum parente afastado a viver no Norte. Estava, por isso, acostumado
ao silêncio e ao vazio de palavras escritas em papel de carta. De qualquer forma,
o facto de nunca ter tido filhos poupava-o agora ao desgosto de se sentir, eventualmente,
vítima do desprezo e do esquecimento. Não era um conforto pensar assim, mas permitia-se
acreditar que era preferível desconhecer qualquer espécie de pânico familiar, como
seja o de ser ignorado pela própria descendência. As conversas com o carteiro eram
modestas e não se alicerçavam em grandes questões. Alberto Reis era o primeiro
a falar do estado do tempo, conversa contemplativa e monótona.
O carteiro achava que tais observações só podiam vir de uma pessoa
ociosa e desvinculada de qualquer responsabilidade profissional e, enfadado, ignorava
completamente as preocupações meteorológicas que se abatiam sobre si. Faça o tempo
que fizer, um carteiro é uma jangada de comunicação. Alberto Reis via agora o carteiro
como um perito em despistar atenções e seguir com o serviço para a frente. O mensageiro
deixara-o praticamente com a conversa em forma de monólogo e subira apressado as
escadas até ao primeiro andar. É claro que Alberto Reis não ousou segui-lo, por
mais furiosa que fosse a sua vontade de estar presente e testemunhar correspondências
e fascinações privadas. Contudo, ainda ficou pelo patamar do rés-do-chão a prestar
atenção o tempo suficiente para descobrir que havia correspondência para Fernando
Pessoa». In Fernando Esteves Pinto, O Carteiro de Fernando Pessoa, Baía dasPalavras,
Edições Parsifal, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-98521-0-5.
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