A Conspiração contra os
Médicis
«(,…) Se tomar distância é sempre um bálsamo
para qualquer doença do espírito, viajar no tempo o é ainda mais. Assim,
decidi-me entrincheirar dentro da minha fortaleza renascentista, onde não
estava disposta a deixar entrar mensagens de telefones móveis, nem cartas
procedentes de outro mundo, nem ausências de nenhum tipo. Ali me sentia segura
com uma simples xícara de café e o relento do inverno florentino que me enchia
a cabeça de sonhos. Embora tivesse aterrado em Florença praticamente por acaso,
logo tive a sensação de estar indo a um encontro marcado com muita
antecedência, sem que eu soubesse. Cheguei à cidade num dia de Inverno com o
capuz do casaco baixado até as sobrancelhas e 300 euros no bolso, sob um
aguaceiro de fim do mundo. O limpa-para-brisas do táxi que me levou do
aeroporto até ao meu apartamento na Via della Scalla não dava conta de limpar a
cortina de água que velava os vidros e mal me deixava entrever o bairro que se
estendia atrás de Santa Maria Novella, repleto de fachadas descascadas com
pátios alagados e oratórios de virgens nas paredes. Toda a cidade parecia
inundada e à mercê da torrente. Mas nesse primeiro momento não me ocorreu
pensar que tinha chegado a um lugar cheio de passagens secretas que ligavam
perigosamente o passado ao presente. Isso foi algo que descobri depois, quando
a força da torrente já me tinha afastado demais da margem para voltar atrás.
Estava tão vampirizada por aquele mundo que às vezes a simples passagem de uma carruagem de
turistas me fazia sentir o cheiro inconfundível da bosta de cavalo pisoteada
nas ruas medievais onde se agrupavam os grémios. Bem perto, na Via Ghibellina,
ficavam as bottegas ou estúdios
dos artistas, com tecto abobadado e portões em forma de arco. Dali me chegavam
o barulho das marteladas seculares, o pó, o cheiro do trabalho braçal misturado
aos aromas penetrantes de vernizes e solventes, até que o reflexo azul muito
intenso da labareda de um maçarico me tirava dos devaneios e me devolvia à
realidade. Do outro lado da janela do Archivio, os plátanos da Viale della
Giovane Italia se iluminavam de vez em quando com a luz dos semáforos. Todos os meus recursos emocionais estavam implicados
na pesquisa que eu tinha nas mãos. Achava que, enquanto a versão dos factos
estivesse incompleta, a interpretação dependia exclusivamente de mim e,
portanto, eu me comprometia por inteiro. Assim, me entreguei à história com
aquele tipo de entusiasmo que só se pode dedicar a uma paixão, sabendo que
sairia dela com a sensação de ter estado imersa em vidas alheias, em tramas que
remontavam a cinco séculos atrás. Talvez tanta profissão de arte como a que se
concentrava em Florença se visse compensada por certa inclinação pelos baixos
instintos, mas eu jamais teria podido imaginar que, dentro daquela utopia
festiva que fez explodir o ambiente do Renascimento, ia me deparar com
personagens que poderiam muito bem estar na sala
dos horrores do museu de cera Madame Tussauds.
A descoberta de uma fonte com a qual eu não tinha contado no
início teve papel importante na mudança de rumo que o meu trabalho foi
sofrendo. Falo dos manuscritos nos quais Pierpaolo Masoni anotava tudo o
que via e fazia esboços de seus desenhos. Tratava-se de uma colecção de nove
cadernos que durante anos havia permanecido ignorada no porão do Archivio e à
qual, depois de muitos esforços, eu tinha conseguido acesso graças às
intercessões do meu orientador de tese junto à Secretaria Nacional do Património
Artístico. Não eram grandes arquivos, mas espécies de cadernos de bolso de
formato retangular (quadernini), alguns um pouco maiores do que um
baralho, encadernados em pelica e fechados por uma alça e um botão cilíndrico
de madeira, um sistema exactamente igual ao do meu casaco irlandês que agora
pendia de um cabide, na entrada da sala. Todas as manhãs o pintor amarrava o
caderno ao cinto e saía pelo mundo preparado para registar atentamente tudo o
que acontecia ao seu redor, como qualquer desses repórteres que podemos ver
hoje em dia com uma câmara no ombro e as botas cobertas de barro entre os
escombros de uma cidade bombardeada, tomando notas em um bloco de papel suado
que depois guardam no bolso de trás da calça.
Eu imaginava Lupetto
percorrendo os saguões empedrados, tão silencioso quanto o cão que sempre o
acompanhava, jogando sobre o ombro esquerdo uma aba da capa com gesto esquivo,
passando junto às portas fechadas, parando
às vezes sob um portal para desenhar as gárgulas que espiavam nos beirais com
uma careta de voracidade e terror, ou olhando a cidade do alto das muralhas,
absorto, com a atenção de um entomologista que estivesse estudando um
formigueiro». In Susana Fortes, Quattrocento, tradução de Maria Alzira Lemos,
Pontas Literary, 2007, Planeta, Edições ASA, 2009, ISBN 978-989-230-488-5.
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