quarta-feira, 11 de novembro de 2015

O Poder e os Pobres. Laurinda Abreu. «E aqueles que forem achados tão fracos ou velhos ou doentes por tal guisa que não possam fazer nenhuma obra de serviço ou alguns envergonhados que já fossem honrados e caíram em míngua e pobreza de guisa…»

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Práticas de caridade e assistência nos alvores da Modernidade. Contextos sociais e políticos
«(…) Num tempo em que a pobreza era comum à maioria da população, a preocupação em evitar que o pobre caísse na miséria e indigência convocava mecanismos de interajuda, quer através do apoio informal, familiar ou vicinal, quer de instituições, de fundação individual ou colectiva, para prestar auxílio na falta de trabalho, na criação de uma nova família ou durante a sua desagregação, na doença e na morte. As confrarias assumiram neste tempo um papel determinante no amparo às populações. As preocupações régias com os mendigos e vagabundos encontram-se já no Livro das Posturas de Afonso II, de 1211, mas foi na Lei das Sesmarias, de 1375, que, pela primeira vez, se sistematizou um conjunto de normas reguladoras da ociosidade e da falsa pobreza. Comummente estudada enquanto instrumento de promoção do desenvolvimento da agricultura, no rescaldo da Peste Negra, e seguindo o inglês Statute of Labourers, de 1349, e o castelhano Ordenamiento de menestrales y posturas, de 1351, a Lei das Sesmarias definia igualmente os eixos centrais da actuação das autoridades em relação à mendicidade: a esmola não poderia substituir o trabalho, considerado obrigatório para o povo, inclusive para os deficientes; os falsos pobres deveriam ser exemplarmente punidos (açoitamento, em privado à primeira vez, em público à segunda prevaricação, seguido de expulsão do país); as licenças para mendigar só poderiam contemplar os demasiado fracos, velhos, doentes e pobres envergonhados. E aqueles que forem achados tão fracos ou velhos ou doentes por tal guisa que não possam fazer nenhuma obra de serviço ou alguns envergonhados que já fossem honrados e caíram em míngua e pobreza de guisa que não podem escusar de pedir esmolas e não são para servir a outrem dêem-lhes as justiças alvarás para que possam pedir suas esmolas seguramente. Apesar de aceitar a mendicidade como forma de subsistência, restringia-a severamente, fixava o perfil do pobre que merecia ser auxiliado e definia como pobres envergonhados aqueles que pela sua condição social não poderiam trabalhar, atente-se, em relação a estes últimos, que a humilhação recaía sobre o trabalho, não sobre a mendicidade, ali vista como socialmente aceitável, sem requerer ocultação. Esta 1ei estabelecia ainda mecanismos de policiamento das populações, apoiados num esquema de informadores locais, comandado pelos melhores das terras.
A Lei das Sesmarias, que, nas questões em análise, haveria de servir de guião aos monarcas portugueses até ao final do Antigo Regime, já enunciava os principais elementos usualmente considerados revolucionários no discurso divulgado por Juan Luis Vives (1492-1540), ainda que de forma mais elaborada, no século XVI: a necessidade de distinguir os pobres que reuniam condições para o trabalho dos que poderiam ser autorizados a mendigar; a sujeição destes a inspecções regulares; a prorecção dos pobres envergonhados. A Vives caberia, sim, uma formulação inovadora do conceito de pobre merecedor, que tinha como sustentação os textos religiosos e a prática de algumas autoridades civis, as quais, para o autor de De pauperum subventione, deveriam ser as únicas responsáveis pela organização e administração da assistência aos pobres. As listas, mais ou menos extensas, conforme os historiadores, das cidades que, na Europa quinhentista, mais se salientam na produção legislativa contra os mendigos, Nuremberga, 1522; Estrasburgo e Leisnig, 1523-24; Zurique, Mons e Ypres, 1525; […] Brandeburgo em 1540, omitem sistematicamente Portugal. E, no entanto, em termos de escala de aplicação, Portugal suplantou os exemplos mencionados. Na verdade, desde os finais do século XV que a política caritativa e social dos monarcas portugueses congregava os três elementos que Paul Slack, resumindo Margo Todd, identifica como tendo sido a base do pensamento e das atitudes humanistas em relação ao campo, na primeira metade do século seguinte: a caridade cristã, a reforma moral e o protagonismo dos poderes públicos». In Laurinda Abreu, O Poder e os Pobres, As Dinâmicas Políticas e Sociais da Pobreza e da Assistência em Portugal, Séculos XVI-XVIII, Gradiva, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-616-596-3.
                                                                                         
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