Não há melhor fragata do que um
livro para nos levar a terras distantes. In E. Dickinson
«(…) Um abrir e fechar
de portas que levou Alberto Reis a imaginar que também a vizinha do primeiro andar
esquerdo entrava em cena, tal era o dramatismo das fechaduras e o palavreado
incompreensível que aí se mantinha. E mesmo que o poeta já se tivesse ausentado
com as cartas que lhe correspondiam, fechando delicadamente a porta, indiferente
a distracções de circunstância e conversas inúteis, Alberto Reis decidiu arriscar
meia dúzia de degraus e, rente à parede, tentou interpretar de forma esclarecida
o conteúdo da conversa entre o carteiro e a senhora Ofélia. Em todo o caso, a possibilidade
de Alberto Reis se manter activo passava por estas manobras de vigilância. Não desejava
de modo algum intrometer-se na vida privada dos inquilinos do prédio, apesar de
sentir ainda a sua veia investigadora cheia de interpretações intuitivas e
correr nela uma espécie de conflitualidade que o levava a interessar-se por situações
estranhas e mistérios por resolver.
A conversa entre o carteiro
e a senhora Ofélia, da qual Alberto Reis apenas ouviu algumas frases sem nexo, tal
era a fronteira imposta por eles para que as palavras não subissem de tom e ficassem
um furo abaixo da compreensão de quem por acaso pudesse ouvi-las, tinha ultrapassado
a linha da ocasionalidade. Assim entendia Alberto Reis, agora uns degraus mais abaixo,
com receio de ser surpreendido na calma disciplina que fazia dele um homem demasiado
subtil e prudente. Além disso, pensava o velho polícia, tanta familiaridade entre
um carteiro insignificante e uma mulher com inclinações para relacionamentos selectivos
levantava-lhe suspeitas e revelava uma ambição social estranha. Também podia
dar-se o caso de esta proximidade ter como finalidade o desenvolvimento de uma relação
amorosa. A ser verdade, e só de pensar na possibilidade de uma agradável comunhão
entre os dois, Alberto Reis sentia-se sufocar
de ciúmes.
De qualquer modo, e porque não tinha provas de nenhum romance, os seus sentidos
estavam todos em pleno esforço de captação do teor da conversa no primeiro andar.
Movido pelo desespero e afrontado pela impaciência, ainda arriscou a subida de dois
degraus, e foi então que percebeu pelas vozes abafadas que se escapavam pela
porta entreaberta que o carteiro estava dentro do apartamento da senhora Ofélia.
Não tinha dúvidas: entre o amor e a conspiração não havia ciência apropriada que
esclarecesse o tumulto que sentia no coração. Desapontado, decidiu recuar. Lutava
agora para que as suas emoções não alastrassem em doses de insatisfação e melindre
e lhe toldassem por completo as convicções policiais. É verdade que todo este esforço
de clarificação o afectava e punha à prova aprendizagens de recurso em situações
de dúvida e complexidade. Foi com esta tímida sensação de fracasso que Alberto Reis
saiu do prédio e, pensativo, andou às voltas no passeio a planear outras formas
de eliminar algumas barreiras que o limitavam na gestão de determinadas abordagens.
Pessoalmente via-se como um indivíduo seguro e com uma dimensão humana capaz de
suportar o mais poderoso caudal de adversidades. Não obstante certas dificuldades,
tudo tinha uma solução e qualquer ideia de azar ou derrota que lhe sobreviesse desenvolvia
nele uma capacidade prodigiosa de colher do mal pistas credíveis para a consagração
do bem, muito embora esta transacção do mal para o bem fosse discutível e estivesse,
de facto, policiada pela sua lealdade à ordem e defendida por uma excessiva ambição
de controlar os outros». In Fernando Esteves Pinto, O Carteiro de
Fernando Pessoa, Baía dasPalavras, Edições Parsifal, Lisboa, 2013, ISBN
978-989-98521-0-5.
Cortesia de Parsifal/JDACT