Carta
a António Feliciano Castilho (III)
«(…) As grandes, as bellas, as
boas cousas só se fazem quando se é bom, bello e grande. Mas a condição da
grandeza, da belleza, da bondade, a primeira e indispensavel condição, não é o
talento, nem a sciencia, nem a experiencia: é a elevação moral, a virtude da altivez
interior, a independencia da alma e a dignidade do pensamento e do caracter. Nem
aos mestres, aos que a maioria boçal aponta como illustres, nem á
opinião, á critica sem sciencia nem consciencia das turbas, do maior numero,
deve pedir conselhos e approvação, mas só ao seu entendimento, á sua meditação,
ás suas crenças. Nesta eschola do trabalho, da dignidade, das altas convicções,
se formam os homens em cujos peitos a humanidade encontra sempre um vasto lago
onde farte a sêde de verdade, de consolações, de ensinos para a intelligencia e
confortos para o coração.
No peito dos outros, dos que
andam de capella em capella na lida afanosa de incensar cada dia todos os
idolos, dos que fazem da gloria uma bastilha para aventureiros levarem de
assalto, e não pulpito aonde se suba com respeito e amor, no peito d'esses não
habita mais do que ambição, vaidade, endurecimento e miseria. Esses lisongeiam os
grandes; e os grandes dão-lhes a mão para que subam, e desprezam-nos depois. Lisongeiam
as maiorias; e as maiorias inconstantes lançam-lhes no regaço um pouco de ouro
e algum applauso de momento, e depois passam e esquecem. Afagam todas as vaidades;
e têm em cada vicio humano um capital, cujo juro dissipam em quanto vivos, porque
essa moeda corrompida para mais ninguem serve. Emfim, nos quinze ou vinte annos
em que dão que falar ás gazetas, aos botequins, aos gremios, a todos os vadios,
a todos os futeis, folgam, vivem alegres e esquecidos de tudo quanto não seja a
satisfação do que ha no homem de mais pequeno, a vaidade e o interesse.
Para os outros a obscuridade, e a
miseria muita vez, mas a estima dos melhores entre os homens pelo espirito, e,
o que excede tudo, a posse d'uma consciencia superior a quanto não seja a
verdade, a justiça e a formosura. As idêas serenas brilham-lhes na escuridão do
isolamento e alumiam-lhes com uma luz doce mas immensa toda a sua obscuridade.
Dão-se a desbaratar o mal dos outros homens, como muitos se dão a augmentar o
seu bem proprio. Vivem na região das bençãos, escutando as palavras da bôcca
invisivel, e com os echos d'essa voz celeste compõem os hymnos de esperança e de
amor para a humanidade. Morrem; mas morrem nobres e puros. Tudo isto porque foram
independentes. Não pertenceram a corrilhos; não elogiaram ninguem para que os elogiassem
a elles; não incensaram os fetiches dos ridiculos pagodes litterarios. Foram honrados.
Foram simples.
A estes taes chamo eu poetas.
Porque nos ensinam o bem. Porque são originaes e dizem sempre alguma cousa nova
á nossa curiosidade de saber. Porque dão com a elevação das vidas confirmação á
sublimidade dos escriptos. Porque são tão poeticos como os seus poemas. Porque
vão adiante abrindo á luz e ao amor novos horisontes. Porque não conhecem
ambições nem orgulhos. Porque têm a cabeça do genio e o coração da innocencia.
É por isso tudo que lhes chamo poetas.
Os outros adoram a palavra,
que illude o vulgo, e desprezam a idêa, que custa muito e nada luz. São
apostolos do diccionario, e têm por evangelho um tractado de metrificação.
Fazem da poesia o instrumento de suas vaidades. Pregam o bem por uso e convenção
litteraria, porque se presta á declamação poetica, mas practicam o egoísmo por
indole e por vontade. Fazem-nos descrer da grandeza humana, porque são uns sophismas
que nos mostram a pequenez e a má fé aonde as apparencias são todas de nobreza.
Preferem imitar a inventar; e a imitar preferem ainda traduzir. Repetem o que está
dicto ha mil annos, e fazem-nos duvidar se o espirito humano será uma estéril e
constante banalidade. São os enfeitadores das ninharias luzidias. Põem os nadas
em pé para parecerem alguma cousa. São os idolos litterarios da multidão que
mal sabe ler. São os philosophos queridos da turba que nunca pensou. São,
emfim, genios no Brasil como v. ex.ª.
Estes taes escusam da nobreza e
da dignidade: têm a habilidade e a finura. Para a obra que fazem, isso lhes
basta. Mas a obra, ex.mo sr., é que é uma obra vulgar: bem feita para agradar
ao ouvido, mas esteril para o espirito. Sôa bem, mas não ensina nem eleva. Ora
a humanidade precisa que a levantem e que a doutrinem. São, pois, necessarias outras
e melhores obras.
Mas, se já alguma hora da
historia impoz aos que fallam alto entre os povos obrigações de seriedade, de
profunda abnegação, de sacrificio do eu ás tristezas e miserias da humanidade,
de trabalho e silencioso pensamento; se alguma hora lhes mandou serem graves,
puros, crentes, é certamente esta do dia de hoje, da edade de transformação dolorosa,
de scepticismo, de abaixamento moral, de descrença, que é o nosso seculo. Refundem-se
as crenças antigas. Geram-se com esforço novas idêas. Desmoronam-se as velhas
religiões. As instituições do passado abalam-se. O futuro não apparece ainda.
E, entre estas duvidas, estes abalos, estas incertezas, as almas sentem-se
menores, mais tristes, menos ambiciosas de bem, menos dispostas ao sacrifício e
ás abnegações da consciencia. Ha toda uma humanidade em dissolução, de que é
preciso extrahir uma humanidade viva, sã, crente e formosa.
Para este grande trabalho é que
se querem os grandes homens. Sahirão esses heroes das academias litterarias?
das arcadias? das sinecuras opulentas? dos corrilhos do elogiomutuo? Sahirão as aguias das capoeiras?
Saltarão as idêas salvadoras do choque das maledicencias e dos doestos?
Nascerão as dedicações do casamento das vaidades? Darão a grande novidade os ledores
de Horacio? Inventarão as novas formulas os que decoram as phrases rabugentas
dos livros bolorentos que chamam classicos? E os Socrates e os Epictetos
descerão para as suas missões das cadeiras almofadadas, das rendosas conezias
litterarias, das prebendas, das explorações?
Fóra
d'essa atmosphera corrupta, e, quando não corrupta, pelo menos esterilisadora,
é mais provavel encontrarem-se as condições que precisam para viver e crescer
os homens uteis e necessarios ás transformações do espirito humano». In
Antero de Quental, Bom-Senso e Bom-Gosto, Carta ao Exmo Sr. António Feliciano
Castilho, Inprenda da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1865, (livros de
Lavado, Lisboa; Livraria da Viuva Moré), Pedro Saborano, the Project Gutenberg
ebook, 2009, ISO 8859-15.
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