Virgindade e casamento. Status religiosorum e status laicorum nos
fins da Idade Média e primeira metade do século XVI
«(…) As frequentes
reprovações e críticas, ainda durante o Outono da Idade Média, ao casamento e à
vida matrimonial, olhados quase sempre do ponto de vista do modelo monástico de
perfeição espiritual, logo, enquanto estados de vida não perfeitos, nos quais a
aspiração à vida espiritual e à salvação da alma era olhada, por alguns, de um
modo muito céptico, deverão ser compreendidas num contexto mais vasto de
polémicas variadas, tanto de ordem religiosa ou literária, como de confronto de
grupos sociais, em particular da aristocracia e do clero. Por outro lado, sendo
tão frequentes quão pouco correctas algumas generalizações sobre o celibato e a
condenação, num sentido vago, do casamento, convirá ter em conta, senão mesmo
realçar, muitos matizes e perspectivas diferenciadas que, por toda a Europa
cristã e, naturalmente, na Península Ibérica, se apresentam fundamentais para
uma aproximação mais cautelosa ao problema, especialmente se se atender à
origem social ou à proveniência cultural dessas críticas. Naturalmente, e antes
de mais, não se poderão perder de vista tanto a importância e as repercussões,
a diferentes níveis, da formação da doutrina clássica do casamento nos séculos
XII e XIII como a momentânea ou demorada predominância doutrinária de um ou
outro padre da Igreja, e, dentro desta, de uma ou outra obra, de um ou outro
teólogo ou doutor, bem como a maior ou menor circulação dos textos, e qual o
seu género literário, uma vez que poderão, todos ou cada um deles, determinar a
focalização adoptada. Mesmo sem esquecer a omnipresença, por demais conhecida,
da visão e dos conselhos paulinos em matéria matrimonial ao longo dos séculos e
nos mais variados autores, lembremos a influência duradoira, cujos traços
principais permanecerão, como veremos, em muitos textos até ao século XVII, de
S. Jerónimo em relação à condição dos casados e, consequentemente, ao
casamento, às suas cargas e, em especial, às segundas núpcias, bem como, por
outro lado e numa perspectiva ligeiramente diferente deste, a de Santo Agostinho
em relação aos problemas sexuais e aos fins do casamento. Mas, apesar da
manifesta superioridade de ocorrências textuais destes padres, sobretudo na sua
qualidade de autoridades, em muitos
textos de finais da Idade Média, outros teólogos e doutores exerceram uma
influência mais ou menos constante, não apenas na linha desses aspectos
fulcrais, mas em outros que tiveram desenvolvimentos posteriores e determinaram
mesmo muitas das perspectivas sobre o casamento durante os séculos XVI e XVII.
Assim se continuaram a
ser evocadas autoridades tão díspares como Clemente Alexandria e Orígenes,
Tertuliano, S. Cipriano e S. Ambrósio, que haviam expressado interpretações
várias e, principalmente, exigentes
do texto bíblico em relação ao casamento, a estes recorreu S. Jerónimo em apoio
da sua defesa da superioridade da virgindade, também são visíveis as influências
de S. João Crisóstomo e, muito mais tarde, de Santo Anselmo, S. Bernardo e S.
Boaventura, que, com frequência, se mostrariam determinantes numa visão mais
favorável do casamento, especialmente pelos matizes da interpretação e da
orientação da doutrina e da moral matrimoniais. Mas não esqueçamos, por outro
lado, o peso canónico duradoiro, sobretudo a partir da época carolíngia, de
diversos teólogos e, em particular, de canonistas, entre eles Richard Worms e
seus comentadores, Pedro Lombardo e Graciano, bem como de S. Tomás de Aquino,
que, privilegiando a dimensão canónica da instituição matrimonial, contribuíram
decisivamente não só para a formação da doutrina clássica do casamento cristão,
mas também para as futuras orientações da moral conjugal (nomeadamente no plano
sexual) e das imagens do casamento cristão. Obviamente, não podemos esquecer
que muitos destes autores se basearam grandemente não só na matriz
neo-testamentária, especialmente nas epístolas paulinas, mas também em muitos
dos pontos de vista de autores clássicos gregos e latinos que, em muitos casos,
os influenciaram definitivamente». In Maria de Lurdes Correia Fernandes,
Espelhos, Cartas e Guias Casamento. Espiritualidade na Península Ibérica
1450-1700, Instituto de Cultura Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade
do Porto, 1995, Porto, ISBN: 972-9350-17-5.
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