«Em 1738 o jovem Mirabeau dirige uma carta ao seu amigo Vauvenargues na
qual o repreende por viver para o dia-a-dia, por não elaborar um programa
destinado a alcançar a felicidade: Ora, meu caro, vós pensais continuamente,
estudais, nada se encontra fora do alcance das vossas ideias, e não sonhais,
por um momento que seja, em traçar um plano consistente a fim de alcançar
aquele que deve ser o vosso único objectivo: a felicidade. E Mirabeau acaba por
enunciar ao seu céptico correspondente os princípios que norteiam a sua
conduta: desfazer-se de preconceitos, preferir a alegria aos humores, seguir as
suas inclinações ao mesmo tempo que as expurga. Podemo-nos rir deste entusiasmo
juvenil. Jovem num tempo que pretendia reinventar o homem e afugentar para
sempre as pestilências do antigo regime, Mirabeau preocupa-se com a sua felicidade
como outros antes dele se tinham preocupado com a salvação das suas almas. Teremos
mudado assim tanto? Imaginemos os Mirabeau de hoje: rapazes ou raparigas de todas
as condições sociais, professando todo o tipo de opiniões, ansiosos para darem
corpo a uma nova época e de riscar para sempre as ruínas de um assustador
século XX. Lançar-se-iam na existência ávidos de exercerem os seus direitos e
portanto de construírem as suas vidas como muito bem lhes aprouver, seguros de
que uma promessa de plenitude foi feita a cada um deles. Desde a mais tenra
idade que todos eles ouvem dizer: sede felizes, pois hoje as crianças já não
são feitas para lhes serem transmitidos valores ou uma herança espiritual, mas
sim para multiplicar o número dos felizes sobre a Terra. Sede felizes! Sob uma capa tão amável haverá injunção mais paradoxal
e mais terrível? Ela formula um mandamento que é tão mais difícil de
obedecer porquanto não tem objecto.
Como saber se somos felizes? O
que determina a norma para o sermos? Por que razão é preciso sê-lo, por que
razão esta recomendação reveste a forma de um imperativo? E que responder àqueles
que piedosamente confessam: não sei? Rapidamente este privilégio se transforma
num fardo para a nossa juventude: ao descobrirem-se como os únicos responsáveis
pelos seus próprios reveses e sucessos, verificariam que a tão esperada
felicidade lhes foge à medida que a perseguem. Sonhariam, como toda a gente,
com a síntese admirável, a que alia sucesso profissional a sucesso amoroso, moral,
familiar a encimar qualquer um deles, qual recompensa, a satisfação plena. Como
se a libertação de si, prometida pela modernidade, se deva deixar coroar pela
felicidade, como um diadema que remata o processo. Mas a síntese esvair-se-ia à
medida em que vai sendo elaborada pelos jovens. E viveriam a promessa de encantamento
não como uma boa nova mas como dívida contraída perante uma divindade sem rosto
que jamais acabaria de ser paga. As mil maravilhas anunciadas só chegariam a
conta-gotas e de forma caótica, tornando mais difícil a procura, mais pesado o
sofrimento. Procurariam derrogar a regra, não corresponder ao padrão
estabelecido. Mirabeau ainda podia sonhar, elaborar planos quiméricos.
Cerca
de três séculos mais tarde, o ideal um pouco exaltado do aristocrata das Luzes transformou-se
em penitência. No entanto, temos todos os direitos, salvo sermos beatos. Nada
de mais vago que a ideia de felicidade, essa velha palavra prostituída,
adulterada, de tal modo envenenada que bem gostaríamos poder bani-la do
vocabulário. Desde a Antiguidade que nada mais existe que não seja a história
dos seus sentimentos contraditórios e ininterruptos: já no seu tempo, Santo
Agostinho enumerava nada menos que 289 opiniões diferentes sobre o assunto, o
século XVIII consagrou-lhe cerca de 50 tratados e nós não cessamos de projectar
sobre os tempos antigos ou sobre outras culturas concepções e obsessões que só a
nós pertencem. É da natureza desta noção ser um enigma, uma causa para disputas
permanentes, uma água que pode tomar todas as formas mas que nenhuma forma
toma. Tanto existe felicidade na acção como na contemplação, na lama como nos
sentidos, na prosperidade como na penúria, na virtude como no pecado. As teorias
sobre a felicidade, dizia Diderot, mais não explicam que a história daqueles
que as elaboram. É uma outra história a que nos interessa: a da vontade de
felicidade como paixão própria do Ocidente desde as revoluções francesa e americana.
O projecto de ser feliz enfrenta três paradoxos. Versa sobre um objecto de tal
modo fluido que se torna intimidatório devido a tanta imprecisão». In Pascal
Bruckner, A Euforia Perpétua, Ensaio sobre o Dever da Felicidade, tradução de
António Belo, Editorial Notícias, 2002, ISBN 972-972-461-220-1.
Cortesia
EditorialN/JDACT