terça-feira, 17 de novembro de 2015

Joana Carneiro. Miguel Torga. Música. Poesia. «Queima do Judas no largo da Sé. Há tantos anos a destruir este símbolo, e não há maneira! Dá a impressão de que é preciso mudar de método. Talvez não seja solução alimentar os pecados o ano inteiro…»

jdact e wikipedia

O Quadrante
«Nas mãos do anjo, o mostrador das obras
humanas
continua a medir a eternidade
da nossa transitória duração...
Divino e tolerante,
o coração,
que por debaixo da sagrada lousa
palpita,
com infinita
paciência
e compaixão,
deixa-nos avaliar, como podemos,
a sombra que fazemos
no chão...»

Exame de consciência
«Por tudo passa o artista:
primeiro, pela alegria
de se julgar criador
no seio da natureza;
depois, por esta tristeza
de ver morrer o que fez,
sem ter nas mãos a certeza
de erguer o sonho outra vez».

Vagabundagem
«Já me servia ser
marinheiro num rio.
Pilotar um navio
de trazer lenha de Penacova...
Ter uma vela
nesta aguarela
que se renova».
Poemas de Miguel Torga, in Diário V’


«Não. O artista, à medida que o tempo passa, não enriquece. Empobrece, é que é. Devagar, mas ininterruptamente, foi dando tudo à arte: a seiva, a inteligência, a vida. E acaba por ficar pobre como Job. O artista velho lembra-me o toco daqueles castanheiros centenários, só casca, ocos por dentro. O cerne foi-se todo em castanhas». In Coimbra, 8 de Abril de 1949.
Visita à Senhora da Amoreira, que só consegui ver por uma fresta, aferrolhada como estava na sua capelinha, erguida num dos cocurutos da serra. Causou-me sempre muita aflição a clausura preventiva dos nossos santos nos seus ermos. O pânico deles testemunha uma impotência apostólica desanimadora. No fundo, apesar de divinos, necessitam de viver fortificados, como qualquer mortal. In Marão, 10 de Abril de 1949.
Queima do Judas no largo da Sé. Há tantos anos a destruir este símbolo, e não há maneira! Dá a impressão de que é preciso mudar de método. Talvez não seja solução alimentar os pecados o ano inteiro, e liquidá-los no fim com o perdão ou com a execução. Lembrava-me, por exemplo, de varrer todos os velhos símbolos duma certa ordem social que não anda para trás nem para diante, e dar cartas de novo. Tenho quase a certeza de que a multidão que assistiu comigo ao espectáculo estava a ver arder o traidor e a senti-lo renascer nas sombras do próprio coração. In Lamego, 16 de Abril de 1949.
Uma trovoada no mar, que, mesmo afastada, me deixou sem acção. É um medo pânico que sinto, impermeável a qualquer razão. As forças criadas pelo homem, sejam elas quais forem, nunca me venceram. Mas os coices da natureza apavoram-me. É que não há ninguém que assuma a responsabilidade deles». In Foz, 18 de Abril de 1949.
In Miguel Torga, Diário, Coimbra, 1951, volumes V a VIII, 5ª Edição conjunta, Publicações dom Quixote, ISBN: 978-972-203-898-0.

Cortesia de PdQuixote/JDACT