quarta-feira, 11 de novembro de 2015

O Poder e os Pobres. Laurinda Abreu. «São várias as pontes que o alvará de 1544 estabelece com as estruturas assistenciais em construção. A mais imediata é o cuidado concedido aos mendigos doentes, que passavam a ser compulsivamente hospitalizados…»

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Práticas de caridade e assistência nos alvores da Modernidade. Contextos sociais e políticos
«(…) A primeira, baseada no princípio da obrigação dos mais abastados em relação aos pobres, com outros fins que não apenas a salvação da alma ou o proveito moral e social dos ricos, já estava completamente espelhada no Compromisso da Misericórdia de Lisboa, de 1498. A reforma moral, tão cara a este humanismo, e com ela a defesa do trabalho como valor estruturante da sociedade, chegava ao século XVI português através da Lei das Sesmarias. A gestão das questões sociais pelos poderes públicos, o último dos três elementos considerados por Todd, foi um traço marcante em Portugal. O carácter nacional das medidas que restringiam a mendicidade foi, porventura, o mais expressivo sinal desse fenómeno. Depois da Lei das Sesmarias, e para além da legislação manuelina, sobressai, na mesma sequência cronológica, o alvará de 4 de Novembro de 1544. Designado pelo monarca Sebastião I como Lei dos Vadios, e considerado por alguns reformadores sociais dos finais do século XVIII um modelo de boas práticas, começou por ser de aplicação restrita ao lugar em que Sua Alteza estivesse com sua corte, estendendo-se em 1558, ainda que com algumas alterações, a todo o país. Alicerçado na associação entre a mendicidade e a ociosidade, num tempo que ainda não questionava os efeitos da falta de trabalho, o texto elenca as medidas repressivas numa hierarquia progressiva, apresentada de forma clara e simples: a primeira vez que os transgressores fossem identificados deviam ser presos, açoitados publicamente e expulsos da localidade onde tivessem cometido o delito da mendicidade não autorizada; caso voltassem a ser apanhados, para além dos açoites e da prisão, perderiam as suas propriedades, se as possuíssem, com condenação a degredo perpétuo, para fora das fronteiras da metrópole; à terceira prevaricação, o degredo teria o Brasil como destino, por um período de dez anos, o que na prática poderia significar que nunca mais regressariam a Portugal.
Os procedimentos conducentes à concessão de autorizações para esmolar continuavam o modelo tardo-medieval, enfatizando a aposta na auto-suficiência do pobre, mesmo quando deficiente; para tal indicava-se um conjunto de possíveis ocupações, a aplicar conforme o grau de limitação física: por exemplo, os doentes dos pés, deveriam aprender o ofício de alfaiate, sapateiro ou outros idênticos; os portadores de defeitos nas mãos, seriam encaminhados para junto de religiosos, e os cegos para ajudarem ferreiros ou serralheiros para lhes tangerem os foles. Todo o processo era caracterizado por um elevado nível de burocratização e obrigatório o seu registo escrito. Para alcançar o estatuto de mendigo encartado, o pobre teria de fazer prova de se ter confessado; a renovação da licença, no final do ano, ficava dependente do conhecimento do pai-nosso, avé-maria, credo e salvé-rainha. Em nenhuma circunstância os estrangeiros poderiam ser autorizados a mendigar, mesmo em caso de óbvia necessidade ou de justificação aceitável, uma orientação que Córdova, à semelhança de outras cidades castelhanas, já praticava desde a década de 20. A difusão da informação sobre os dias e locais de exame dos potenciais mendigos cometia-a a Coroa aos próprios pobres e às suas redes sociais.
São várias as pontes que o alvará de 1544 estabelece com as estruturas assistenciais em construção. A mais imediata é o cuidado concedido aos mendigos doentes, que passavam a ser compulsivamente hospitalizados, mas a verdadeira novidade residia na protecção das crianças. Depois de institucionalizado o apoio aos expostos por Manuel I (nas Ordenações de 1512), este diploma reforçava a atenção a prestar às crianças exploradas pelos mendigos que as tomavam como suas acompanhantes e estendia até elas as condições oferecidas pela lei aos expostos, quer ao nível da criação, quer da aprendizagem de ofício, atingidos os sete anos, ou a colocação no mercado de trabalho. Uma terceira determinação, talvez a mais importante na perspectiva desta análise, cometia à Confraria da Corte, criada durante a estada da família real em Almeirim, em 1527, para assistir os pobres que acompanhavam a corte nas suas deslocações, especialmente os cavaleiros e viúvas de militares que tinham servido a Coroa em África, a responsabilidade pela disponibilização de instalações, iluminadas e aquecidas, onde os pedintes encartados pudessem pernoitar. Significava isto que o monarca transpunha para a lei a prática dos hospícios e de alguns hospitais, assumindo que a itinerância dos mendigos os excluía dos mecanismos formais de assistência regular». In Laurinda Abreu, O Poder e os Pobres, As Dinâmicas Políticas e Sociais da Pobreza e da Assistência em Portugal, Séculos XVI-XVIII, Gradiva, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-616-596-3.

Cortesia de Gradiva/JDACT