A Presunção da Aversão a Si Próprio
«(…) A aversão ao Ocidente, este prazer na condenação e na dilaceração,
é tipicamente ocidental. Os sumos sacerdotes da difamação, com os seus anátemas,
limitam-se a sublinhar a sua pertença a um universo que para eles é execrável. Esta
desconfiança que pesa sobre os nossos êxitos mais retumbantes arrisca-se a degenerar
em derrotismo fácil. O espírito crítico ergue-se contra si próprio e destrói a
sua forma. Porém, ao invés de sair engrandecido e purificado, devora-se numa
espécie de autocanibalismo e, nessa destruição, apela e uma morosa volúpia a
que nada resiste. A hipercrítica que tudo destrói redunda então num ódio de si
próprio. Da recusa dos dogmas nasce um novo dogma destruidor. Enquanto Europeus
e Norte-americanos, compete-nos apenas expiar eternamente os males que
infligimos aos outros povos. Será difícil entender que, desta forma, nos tornamos
capitalistas da auto-acusação e que esgrimimos um singular orgulho em ser os
piores? Com efeito, a autodifamação esconde dificilmente uma glorificação
distorcida. Somos a origem de todos os males, ao passo que os outros homens são
animados pela simpatia, benevolência e candura. É o paternalismo do remorso:
julgarmo-nos reis da infâmia é, ainda assim, ocupar um lugar cimeiro na História.
Desde Freud, sabemos que o masoquismo não passa de um sadismo invertido e de
uma subvertida vontade de dominar. A Europa continua a ser messiânica em menor
escala, é uma militante da sua própria fraqueza e dissemina a humildade e o
pudor (verifica-se até um cepticismo fanático que reproduz de certa forma a fé
que pretende extinguir: por exemplo, quando Cioran afirma que negar o carácter
intermutável das ideias é estar condenado ao derramamento de sangue, transmite
uma ideia cujos factores não são intermutáveis; em moldes similares, quando, em
nome da caridade, o filósofo Gianni Vattimo pede ao cristianismo que reconheça
que não é o único detentor da verdade e que doravante, no diálogo
intercultural, deve calar-se e escutar os outros, reconciliando-se com a sua
vocação universalista, isenta de implicações coloniais imperialistas e
eurocêntricas, profere uma afirmação que recai na categoria do artifício do
orgulho, assim designada por La Rochefoucauld; porque esta reivindicação
unívoca não se dirige ao Islão nem ao Budismo ou ao Hinduísmo; o cristianismo
seria assim o único credo a reconhecer o carácter parcial dos seus
ensinamentos. É ainda em nome da noção do cristianismo como religião única que
ela aceita retrair-se diante das restantes pois é a única que reconhece a
pluralidade de crenças e a relatividade dos dogmas). A sua aparente
autodepreciação disfarça mal uma enorme presunção. Vê a barbárie como o seu
direito exclusivo, é o seu orgulho, e nega-a aos outros, descobrindo
circunstâncias atenuantes (uma forma de isentá-los de toda a responsabilidade).
Ela arroga-se assim a única ré de actos desumanos e exibe o estigma dessa
malevolência, tal como outros exibem as suas medalhas. Nem as catástrofes
escapam a esta mania das grandezas, muitos analistas vêem no menor ciclone,
inundação e tremor de terra a mão pérfida Europa e da América. A propósito do tsunami de Dezembro de 2004, alguns até
invocaram a deusa Gaia que se ergueu do fundo dos oceanos para punir a
civilização industrial! Tal como a oração, a auto-acusação é um meio de agir
simbolicamente à distância quando nos sentimos impotentes. Atribuir ao homem a
culpa de todas as desgraças do mundo é uma megalomania ímpar. Uma certa
corrente da Ecologia dá provas de um antropocentrismo desenfreado e confirma o
nosso estatuto de senhores e destruidores
do planeta. Crer que amanhã, por exemplo, controlaremos a chuva e o bom tempo e
que eclipsaremos a natureza é reincidir numa ilusão prometeica, à semelhança,
dos adeptos mais fanáticos do progresso. Podem pôr tudo em causa! Tudo, excepto
a nossa perversidade! Eis a prova mais flagrante do imperialismo invertido. A
descolonização privou a Europa do seu poder e o seu peso económico declina
continuamente mas, de acordo com uma avaliação muitíssimo exagerada, continuamos
a ver-nos como o malévolo centro de gravidade do universo». In
Pascal Bruckner, La Tyrannie de la Pénitence, Essai sur le Masochisme
Occidental, Editions Grasset Fasquelle, 2006, O Complexo de Culpa do Ocidente.
Publicações Europa-América, 2008, ISBN 978-972-1-05943-6.
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