O Arco
da Santa
«Mal pensa o voluntário académico,
quando descendo rua de Sant’Ana abaixo, o braço no armão da peça, e os olhos na
alta janela donde, entre o festivo azul e branco, lhe sorri constitucional
beldade; e ele vai misturando, no alvoroçado pensamento, conquistas bélicas e
amorosas, as damas que há de render e as guerrilhas que há de espatifar, e mais
que tudo, as histórias que sobre isso se hão de contar à noite no refeitório
dos Grilos hoje, oh impiedade! Convertido em casa de tripudio e bambochata de
maganos estudantes, mal pensa ele que terreno clássico vai pisando, por que
veneráveis padrões históricos vai passando sem os conhecer, que
interessantíssima cena romântica é essa em que, depois de tantos séculos, novo
e não menos interessante actor, lhe coube vir figurar. Falta-te, é verdade, ó
nobre e histórica rua de Sant’Ana, falta-te já aquele teu respeitável e devoto
arco, precioso monumento da religião de nossos antepassados, e que, certo é,
mais te vedava a pouca luz do céu material
que tuas augustas dimensões deixam penetrar, mas era ele em sim mesmo, foco da
espiritual luz de devoção que ardia no bendito nicho consagrado à gloriosa
santa do teu nome.
Caíste
pois tu, ó arco de Sant’Ana, como, em nossos tristes e minguados dias, vai
caindo quando aí há nobre e antigo às mãos de inovadores plebeus, para quem
nobiliarquias são quimeras, e os veneráveis caracteres heráldicos de
rei-d’armas, Portugal língua morta e esquecida que nossa ignorância despreza,
hieroglíficos da terra dos Faraós antes de descoberta a inscrição Damieta!
Assentaram os miseráveis reformadores que uma pouca de luz mais e uma pouca de
imundície menos, em rua já de si tão escura e mal enxuta, era preferível à
conservação daquele monumento em todos os sentidos respeitável! Com que desapontamento deste meu coração, depois
de tantos anos de ausência, não andei eu procurando, em vão!... Na rua de
Sant’Ana, uma das primeiras que a minha infância conheceu, as góticas feições
daquele arco?... E a lâmpada que lhe ardia contínua, e os milagres de cera que
lhe pendiam à roda, e toda aquela associação de coisas que me trazia à memória
os felizes dias de minha descuidada meninice! Meninice que passou, sem
mocidade, a esta tão trabalhosa, tão árida, tão despegada virilidade, em que
não tardam as cãs e as rugas a visitar-me com mais precoce velhice ainda!
Ai,
rua de Sant’Ana! Que é do teu arco e da tua festa, quando se lhe armava aquele
palanque com que ficava uma igreja improvisada, e um coreto e um púlpito, aonde
grasnava a música, berrava o frade, e toda a vizinhança tinha um dia de
folgar?... E muito se rezava e muito se namorava e muito se comia, e todos iam
para o céu. Ora que o façam hoje! Foi o célebre fracasso de José U que acabou
com a devota festa e com o meu querido arco também. José U, para ilustração da
presente história seja dito, era um curioso figurão da minha terra, uma das
notabilidades, como se dizia em França, e hoje por cá se diz também já nos
botequins, umas das notabilidades desta nobre e sempre leal cidade. Insigne
mestre de capela, trazia arrematadas todas as festas e oragos menores do Porto
e seus subúrbios, sem exceptuar os três São Joões rivais; a saber, São João
o velho ou o republicano, de Cedofeita, São João o malhado, da Lapa,
São João o realista, do Bonfim. Com efeito, São João que da fama de
pedreiro se não livra!... Não me faltava ver mais nada.
Era
o Sr. José U homem bem apessoado, e de tal capacidade e rotundidade nas formas
posteriores, que, por elegante e popular metonímia, lhe chamaram a parte pelo
todo, e foi apelidado José U, ou José outra coisa que a gravidade da minha
história me não deixa por aqui mais clara. Andava, entre outras, de imemorial
posse, na sua correicção e jurisdição harmónica, a parte música instrumental e
vocal da festa de Sant’Ana do arco. Corria o ano de 182... Chegou o dia da
santa, armou-se o palanque, treparam os menestréis ao coreto, saíram os padres
detrás duma janela, principiou a missa cantada, sobre garraio capucho ao
púlpito, começa José U com a sua gente o moteto de rigor... E eis senão quando,
o travejamento de toda aquela caranguejola que dá de si, rende, casca, e zás
por ali abaixo desanda tudo à rua. José U com o rolo de solfa na mão, o ceptro,
o bastão de general Colcheia! Cai com todo o peso do seu nome num rabecão já
estatelado.
Foram
dentro com tremendo som os tampos do bojudo instrumento; e foi tremendo o
diapasão que no violento contacto se fez... Em tal estado e posição ficou o
bem-aventurado, que, à primeira sensação de desgosto e terror geral, sucedeu o
riso e turbulenta cachinada. Acabou-se a festa da santa, poupou-se ao capuchio muita berraria e muita sandice,
e os festeiros jantaram mais cedo. E assim terminou a última função da senhora
Sant’Ana do arco. E o arco foi demolido daí a pouco tempo para minha eterna
saudade e de todos os amadores e veneradores de arcos antigos e de semelhantes
preciosidades. Fora fatídica, fora fatal ao bendito arco a agourenta queda de
José U!» In Almeida Garret, O Arco de Santana, 1845-1850, Imprensa Nacional, Livraria
Figueirinhas (1947-1ª edição) Porto Editora, Porto, 2011, ISBN
978-972-004-980-3.
Cortesia
de INCM/PortoE/JDACT