«(…) A porta fechou-se atrás de si. Percorreu um longo corredor
mergulhado em penumbra, onde os passos, amortecidos pela alcatifa, soavam
surdamente. Abriu uma porta grande e pesada, atravessou uma sala deserta e
iluminada por duas grandes manchas de luar no sobrado, onde se estendia uma
cruz de sombra. Foi até à janela, abriu-a e olhou para fora. A lua fazia
cintilar as árvores e as casas dispersas pela quinta. Do andar de baixo subia
um ruído de vozes. No terreiro alongavam-se, como os cinco dedos da mão, as
projecções luminosas das cinco frestas da cozinha. Benedita cerrou devagar as
janelas e correu os ferrolhos dos caixilhos. As apalpadelas, dirigiu-se a uma
porta cujas frinchas deixavam passar
fracos raios de luz. Entrou.
Em duas camas pequenas, lado a lado, dormiam duas crianças. Uma lâmpada
colocada em cima de uma mesa baixa espalhava em redor a sua claridade mortiça e
trémula. Benedita debruçou-se a contemplar os dois adormecidos. Uma das
crianças mexeu-se e, depois de deitar um dos braços para fora da roupa que a
tapava, encolheu-se toda, suspirando, e continuou a dormir. Benedita sentou-se
numa cadeira e pôs-se a vigiar as crianças, envolvida pelo silêncio que pesava
sobre a casa. Embrulhou-se no xale que trazia nos ombros e, insensivelmente,
foram-se-lhe as pálpebras fechando, entorpecendo. Não adormeceu de todo, mas
ficou imersa numa sonolência mole, num torpor agradável, de que acordava a
espaços para logo continuar. O seu desejo seria ir deitar-se. Mas, para quê? De
um momento para o outro, teria de levantar-se, para atender o patrão. Tão bom
senhor, aquele!
O único que, no seu modo de ver, poderia ter merecido a menina Maria
Leonor, a quem agora, aliás, já não chamava menina. Depois que a ama casara,
costumara-se a chamar-lhe senhora dona Maria Leonor, e senhora dona Maria Leonor ficara
para sempre. Bem que lhe custara a habituar-se, mas, enfim, não era ela uma
senhora casada? A si, é que ninguém quisera para mulher e agora, com quarenta e
dois anos, já não era tempo. Benedita sorria no meio do seu devanear,
recordando o casamento da senhora. Bela festa, como nunca vira outra! Depois da
cerimónia, tinham partido os três para a Quinta Seca, que de seca só tinha o
nome, actualmente. Nos primeiros tempos, ambas tinham sofrido de saudades, mas
o senhor Manuel Ribeiro levara-as algumas vezes a Lisboa. Por fim, acabaram por
não desejar aquelas viagens. Era tão agradável viver no campo, fora da
balbúrdia das ruas apinhadas de gente, que ambas já detestavam e temiam! Os
anos passaram, e ela tinha duas crianças para entreter e para adorar. Não! Nada
mais desejava. Era feliz. Só há pouco tempo a doença do patrão viera
interromper a felicidade da casa. Nem já os trabalhadores da quinta pareciam os
mesmos. Todos os dias queriam saber das melhoras do patrão e, perante as
respostas quase sempre desanimadoras, suspiravam, pesarosos. Era um raio duma
doença...
Nem o mano do senhor, o
senhor doutor António Ribeiro, nem aquele outro médico do Parreiral, o doutor Viegas, atinavam com o remédio
para a moléstia. Doença tão ruim era ela, que o patrão estava uma sombra do que
fora antes. Talvez se curasse, mas não seria, decerto, nunca mais, o mesmo
homem que conseguira fazer daquele chão quase bravio, que herdara do pai, a
mais formosa quinta dos arredores. Benedita bem podia dizer que vira o milagre
realizar-se diante dos seus olhos, ano a ano, estação a estação. E agora... O
patrão estava doente. Quisesse Deus que ele sarasse, e a sua presença bastaria
para que aqueles campos não deixassem de ser o que eram! Mas se ele morria, que
desastre, Senhor Deus! A quinta era o único bem da família, e, sem o braço dum
homem a sustentá-la, seria a pobreza. A senhora dona Maria Leonor era uma
mulher corajosa e firme, disso estava certa. Mas seria suficiente?
Benedita despertou. Teve um ligeiro estremecimento ao reparar nas
crianças que repousavam. Levantou os olhos para o relógio de parede que
tiquetaqueava monotonamente no quarto. Meia-noite e meia hora! Como se deixara
assim amodorrar? Não dormira, isso não, mas as pálpebras pesavam-lhe imenso e a
cabeça caía-lhe para o peito, atordoada. Tinha sono. Que faria a senhora àquela hora? Velava o marido,
decerto. Sorriu, triste, pensando que também gostaria de velar o seu marido, se
o tivesse. Nunca homem nenhum lhe dissera, porém, o que o senhor Manuel Ribeiro
dizia à senhora e que, por vezes, ouvia. Os quartos eram tão próximos que os
ruídos mais fortes atravessavam as paredes e iam retinir-lhe nos ouvidos como
risadas de troça. Deitada na sua estreita cama, ouvia e sofria, em silêncio, a
pena de estar só. Só, estaria toda a vida, com certeza. Era apenas dois anos
mais velha que o senhor. Poderia ser esposa dele, se Deus o tivesse querido...
Abanou a cabeça com força, expulsam os últimos restos do
sonho. Ergueu os braços retesados e espreguiçou-se. Um quebranto delicioso
invadiu-lhe os membros. Reagindo, levantou-se da cadeira e, depois de olhar de
novo as crianças adormecidas, saiu do quarto, levando a lâmpada que lhe
derramava no avental uma luminosidade dourada. Bateu uma hora. Do andar de baixo já não vinha o rumor das
vozes. Tinham ido deitar-se, os criados. A chuva percutia as vidraças: o
Inverno nunca mais tinha fim. Parecia que o céu se desentranhava em água e que
fazia da terra um mar de lama. Havia já algumas semanas que não se podia trabalhar na
quinta. Benedita entrava
no patamar da escada que descia ao rés-do-chão, quando, de repente, no fundo do
corredor, no quarto dos patrões, ouviu um grito. O corpo tremeu-lhe como os
vimes na corrente do rio. A porta do quarto abriu-se com violência. Maria
Leonor saía, gritando, desgrenhada e com o horror vincado no rosto. Das mãos,
subitamente sem força, de Benedita, caiu a lâmpada com um estrondo surdo,
apagando-se ao rolar no sobrado. Maria Leonor caminhava pelo corredor fora,
gemendo e gesticulando como louca. Tropeçou e desabou, no chão, a soluçar.
Sobre a cómoda, as velas iluminavam ainda a imagem da Virgem branca. Ao fundo,
na cama, o corpo imóvel de Manuel Ribeiro, com um dos braços pendente, rojando
o soalho». In José
Saramago, Terra do Pecado (Viúva), Editorial Minerva, 1947, Editorial Caminho,
1997, 2010, ISBN-978 972 211 145-4.
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