Infanta
dona Urraca (1150?-1222?). Filha de Leão;
filha de Afonso Henriques de Portugal; mulher do rei Fernando II de Leão; mãe
do rei Afonso IX de Leão
«(…)
Em finais de 1171, o papa Alexandre
III tinha em mãos muitos problemas com origem na Península Ibérica. Um deles
era o matrimónio, celebrado cinco anos antes, da infanta dona Urraca, filha de Afonso
Henriques de Portugal, com o rei Fernando II de Leão. Pouco antes o casal tinha
caído em desgraça, do ponto de vista papal,
com o nascimento de um filho. Deviam, portanto separar-se. O problema residia
em que dona Urraca e Fernando se tinham unido carnalmente, havendo entre eles
um parentesco de terceiro grau de consanguinidade, pois desde o Concílio de
Elvira, reunido no século IV, a Igreja Católica proibiu os matrimónios de
pessoas relacionadas até ao sétimo grau. Mas no entanto, nos cerca de mil anos
de relações da Cúria romana com os poderosos deste mundo, o papado tinha-se
visto na contingência, em várias ocasiões, e sobretudo por motivos políticos,
de condescender com eles e aceitar o facto consumado dessas uniões. À primeira
infanta portuguesa que reinou em Espanha, calhou-lhe em sorte o seu matrimónio
ter-se realizado durante o papado de um jurista experimentado, um pontífice
decidido a fazer aplicar as leis canónicas, inclusivamente aos grandes da terra,
em particular o Código de Graciano, que desde trinta anos antes reforçava
a proibição sancionada em Elvira.
Não
obstante, como o papa era, além de soberano, um homem de religião, disposto a
praticar a caridade cristã, decidiu enviar a Leão um dos melhores diplomatas de
que a cúria dispunha. A sua missão era resolver o problema da forma mais
honrosa para todas as partes. O escolhido foi o cardeal Jacinto, grande conhecedor
dos assuntos da Península Ibérica, pois vinte anos antes tinha tido ocasião de
tratar alguns deles in Hispania,
inclusivamente com o pai de dona Urraca. Porque não só o casal estava unido já há
mais de um lustro, o que criara, sob qualquer perspectiva, um vínculo afectivo
entre o rei e a rainha, como depois de todo esse tempo de espera acabava de ter
um filho. Havia assim um problema acrescido: estabelecer a condição do infante.
Seria o filho de dona Urraca, no caso de o seu matrimónio não ser considerado
válido, considerado legítimo, conservando assim o direito à sucessão do reino
de Leão?
A
primeira tomada de posição do cardeal Jacinto para tentar resolver o problema,
foi dada a conhecer na cidade de Toro, a 1 de Maio de 1172. Segundo a documentação, a rainha dona
Urraca não estava presente, o que é bastante estranho, pois de todos os
documentos conservados do reinado do marido até esta data, há poucos em que ela
não seja citada, sempre ao lado do marido. Apesar de os textos relativos a este
período referirem grandes fomes no reino, com as inerentes enfermidades, não é
provável que a sua ausência se deva a elas. De facto, um mês depois daquele
encontro, o rei e a rainha, com o seu séquito real, fizeram uma visita ao
cardeal nos aposentos que ele ocupava na cidade de Zamora, para onde se
transferira a corte, pois era o purpurado que estava mal de saúde. O objecto da
visita foi apresentar pessoalmente as saudações reais. Nessa ocasião, o rei
doou à Santa Madre Igreja e ao seu querido cardeal Jacinto (tamanha
hipocrisia…),
o castelo de Castro Toraf, um dos bens concedidos à rainha pelas arras. O
motivo aludido no documento da doação era a
salvação da sua alma e da de dona Urraca.
Tanto
neste documento como no anterior, não se menciona o filho do casal, o infante
Afonso, que figurava nos documentos anteriores à chegada do cardeal. Esta
ausência chama fortemente a atenção, sobretudo se se analisar com mais atenção
o propósito da doação. Seria uma forma, não muito subtil, de tentar abrandar a
rigidez papal? Ou um sincero acto de expiação por parte dos monarcas por terem casado
sem a dispensa de preceito? Seja como for, segundo a escassa crónica do
acontecimento, uma vez recuperada a saúde o cardeal deixou a corte leonesa e
dirigiu-se ao encontro do rei de Portugal, pai de dona Urraca. Jacinto era um
velho conhecido de Afonso Henriques, ou pelo menos do arcebispo João Peculiar, o
activo arcebispo de Braga, braço direito do rei português para questões
pontifícias. Afonso Henriques encontrou-se com o cardeal Jacinto em Setembro,
em Coimbra, provavelmente no local onde então se situava a residência real, na
colina que se eleva a partir da baixa, mais ou menos no local onde hoje está a
Universidade. Devem ter sido debatidos dois temas importantes: outorgaria finalmente
o pontífice, com o seu selo, o imprimatur definitivo da independência
portuguesa, solicitada quase trinta anos antes? Acabaria Alexandre III
por conceder a dispensa do matrimónio da filha, tão tardiamente solicitada?
Apesar
de Afonso Henriques ter a impressão de que Jacinto podia ser mais flexível do
que o papa, sabia que, devido ao interesse do seu reino no respeitante ao
primeiro tema, não podia pressionar demasiado o segundo. Tinha, pois, de continuar
a ser paciente e a esperar. Se realmente o cardeal considerava a possibilidade
de ser condescendente com os desejos do rei português e as necessidades de dona
Urraca, seguramente aproveitaria a sua estada em Coimbra para rebuscar informações
acerca dela que pudessem favorecer a sua intercessão junto do papa, pois a
rainha portuguesa de Leão teria nascido na cidade em que se encontrava agora o
purpurado. Dona Urraca era a primeira filha de Afonso Henriques e dona Mafalda
de Sabóia. Nasceu provavelmente em 1150.
Antes dela, os reis tinham tido um filho varão, que morreu novo». In
Marsilio Cassotti, Infantas de Portugal, Rainhas de Espanha, tradução de
Francisco Boléo, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-396-6.
Cortesia
ELivros/JDACT