Primeira
Carta a Madame de Jouarre
«Minha querida madrinha.
Ontem, em casa de Madame de
Tressan, quando passei, levando para a ceia Libuska, estava sentada,
conversando consigo, por debaixo do atroz retrato da marechala de Mouy, uma
mulher loura, de testa alta e clara, que me seduziu logo, talvez por lhe
pressentir, apesar de tão indolentemente enterrada num divã, uma rara graça no
andar, graça altiva e ligeira de deusa e de ave. Bem diferente da nossa
sapiente Libuska, que se move com o esplêndido peso de uma estátua! E do
interesse por esse outro passo, possivelmente alado e diânico (de Diana),
provém estas gratujas. Quem era?
Suponho que nos chegou do fundo da província, de algum velho castelo do Anjou
com erva nos fossos, porque me não lembro de ter encontrado em Paris aqueles cabelos
fabulosamente louros como o sol de Londres em Dezembro, nem aqueles ombros decaídos,
dolentes, angélicos, imitados de uma madona de Mantegna, e inteiramente desusados
em França desde o reinado de Carlos X, do Lírio
no Vale e dos corações incompreendidos. Não admirei com igual fervor o
vestido preto, onde reinavam coisas escandalosamente amarelas. Mas os braços
eram perfeitos; e nas pestanas, quando as baixava, parecia pender um romance
triste. Deu-me assim a impressão, ao começo, de ser uma elegíaca do tempo de
Chateaubriand. Nos olhos porém surpreendi-lhe depois uma faísca de vivacidade
sensível, que a datava do século XVIII. Dirá minha madrinha: Como pude eu abranger tanto, ao passar, com
Libuska ao lado fiscalizando? É que voltei. Voltei, e da ombreira da porta
readmirei os ombros de velas por trás, entre as orquídeas, nimbava de ouro; e
sobretudo o subtil encanto dos olhos, dos olhos finos e lânguidos... Olhos
finos e lânguidos. É a primeira expressão em que hoje apanho decentemente a
realidade. Por que é que não me adiantei, e não pedi uma apresentação? Nem sei. Talvez o requinte em retardar, que fazia com
que La Fontaine, dirigindo-se mesmo para a felicidade, tomasse sempre o caminho
mais longo. Sabe o que dava tanta sedução ao Palácio das Fadas, nos tempos do
rei Artur? Não sabe. Resultados de não ler Tennyson... Pois era a imensidade de
anos que levava a chegar lá, através de jardins encantados, onde cada recanto
de bosque oferecia a emoção inesperada de um flirt, de uma batalha, ou de um banquete... (Com que mórbida
propensão acordei hoje para o estilo asiático!) O facto é que, depois da
contemplação junto à ombreira, voltei a cear ao pé da minha radiante tirana.
Mas por entre a banal sandwich de
foie-gras, e um copo de Tokay que Voltaire, já velho, se recordava de ter
bebido em casa de Madame de Etioles (os vinhos dos Tressans descendem em linha
varonil dos venenos de Brinvilliers), vi, constantemente vi, os olhos finos e lânguidos.
Não há senão o homem, entre os animais, para misturar a languidez de um olhar fino
a fatias de foie-gras. Não o faria
decerto um cão de boa raça. Mas seríamos nós desejados pelo efémero feminino se não fosse esta
providencial brutalidade? Só a porção da matéria que há no homem faz com que as
mulheres se resignem à incorrigível porção de ideal, que nele há também, para
eterna perturbação do mundo. O que mais prejudicou Petrarca aos olhos de Laura,
foram os Sonetos. E quando Romeu, já
com um pé na escada de seda, se demorava, exalando o seu êxtase em invocações à
noite e à Lua, Julieta batia os dedos impacientes no rebordo do balcão, e
pensava: Ai, que palrador que és, filho dos
Montaigus! Este detalhe não vem em Shakespeare, mas é comprovado por toda a
Renascença. Não me amaldiçoe por esta sinceridade de meridional céptico, e
mande-me dizer que nome tem, na paróquia, a loura castelã do Anjou. A propósito
de castelos: cartas de Portugal anunciam-me que o quiosque por mim mandado
erguer em Sintra, na minha quintarola, e que lhe destinava como seu pensadoiro e retiro nas horas de sesta,
abateu. Três mil e oitocentos francos achatados em entulho. Tudo tende à ruína
num país de ruínas. O arquitecto que o construiu é deputado, e escreve no Jornal da Tarde estudos melancólicos
sobre as Finanças! O meu procurador em Sintra aconselha agora, para reedificar
o quiosque, um estimável rapaz, de boa família, que entende de construções e
que é empregado na procuradoria Geral da Coroa! Talvez se eu necessitasse um
jurisconsulto, me propusessem um trolha. É com estes elementos alegres, que nós
procuramos restaurar o nosso império de África! Servo humilde e devoto.
Fradique
In
Eça de Queiroz, Cartas D'Amor, O Efémero
Feminino, Correspondência de Fradique Mendes, 1900, Editora Garamond,
Rio de Janeiro, 2001, ISBN 978-858-643-546-5.
Cortesia
de EGaramond/JDACT