Os Filhos da Luz. Baviera, 1787
«(…) Respirou fundo, verificou
com enfado que não restava café na xícara e lançando mão de uma sineta que se
erguia marcialmente a algumas polegadas da sua mão esquerda tocou-a com força.
Passaram-se apenas alguns instantes e na porta maciça do aposento se ouviram
algumas pancadas curtas, como se temessem incomodar. Entre, disse Koch com uma
voz que soou fria e carregada de autoridade. Um rapagão de barba loura e
eriçada enfiou seu rosto avermelhado pela fresta aberta entre o umbral e a
porta. Alguma ordem, senhor?, perguntou com uma voz que pretendia aparentar uma
atitude serviçal mas que pouco conseguia. Mais café, respondeu Koch apontando
com o indicador a xícara vazia. Uma xícara, senhor?, indagou o jovem. Uma jarra,
respondeu Koch, e não se demore, Steiner. Tinha que reconhecer que a
advertência carecia de sentido. Na verdade, Steiner, apesar da juventude,
constituía um verdadeiro exemplo de ordem e delicadeza. Uma ordem que lhe dava
era obedecida de maneira imediata e eficiente. Com certeza, não tinha se enganado
quando permitiu a sua entrada na corporação, e ao colocá-lo perto dele.
Quando Steiner fechou a
porta, Koch se felicitou pela contribuição à ordem que o agente representava.
Bem que gostaria de dedicar alguns instantes à autocomplacência, mas teria que
ser mais tarde. No momento..., no momento, existiam prioridades. Jesus de
Nazaré, o Grão-Mestre de nossa ordem, apareceu numa época em que o mundo se
encontrava na mais absoluta Desordem, e entre pessoas que durante séculos
tinham gemido sob o jugo da Escravidão. Ensinou-lhes as lições da razão. Para
agir de uma forma mais eficaz, serviu-se da Religião, das opiniões que eram
correntes naquela época, e, de uma forma muito astuta, combinou as suas
doutrinas secretas com a religião popular, e com os costumes que tinha a seu
alcance. Foi justamente neles que envolveu as suas lições: ensinou através de
parábolas. Parábolas..., nunca lhe teria ocorrido pensar que as parábolas
contivessem um ensinamento secreto vinculado a causas políticas. Sem dúvida,
tinha que reconhecer que a carta era, além de disparatada, substanciosa. Jesus
escondeu o significado valioso e as consequências das suas doutrinas, mas as
revelou com cuidado a alguns poucos eleitos. Fala do reino dos justos e dos
fiéis, do reino de seu Pai, de quem somos filhos. Limitemo-nos a tomar a liberdade
e a igualdade como os grandes objectivos de sua doutrina, e a Moralidade como o
caminho para os alcançar, e todo o Novo Testamento será compreensível; e Jesus
aparecerá como o redentor dos escravos.
Koch não era um homem
especialmente religioso. Certamente, acreditava em tudo o que a Santa Madre
Igreja ensinava e guardava minuciosamente os dias santos, mas não poderia
determinar que o que o impelia a isso era a devoção ou o desejo de que a ordem
não se rompesse. Contudo, apesar de seu pouco entusiasmo, tinha suficiente conhecimento
da religião para chegar à conclusão de que aquilo que tinha acabado de ler não
passava de puro disparate. Então, pensou com ironia, católicos e protestantes passaram
dois séculos se enfrentando em terras alemãs, em metade da Europa, do outro lado
do oceano, simplesmente porque não tinham compreendido que o cristianismo se limitava
a impelir a liberdade dos escravos... Que ridículo! Que idiota poderia
acreditar em semelhante tolice? Bem, precisava concluir aquela leitura o quanto
antes. Sim, entre, disse quando ouviu que batiam na porta. Steiner depositou um
bule de café fumegante sobre a mesa. Quer que eu o sirva, senhor?, perguntou
solícito o rapaz de rosto avermelhado.
Koch fez um gesto com a
mão indicando-lhe que deveria sair do aposento. Um tanto surpreso, o jovem
inclinou a cabeça e cochichou algumas palavras de cortesia antes de sair. Pousou
a carta sobre a escrivaninha, impulsionou com um movimento a poltrona para
poder se afastar do móvel em que se apoiava e ficou de pé. Notou então que
estava com as articulações inchadas, cansadas, como que dormentes. Levou as
duas mãos aos rins e esticou o tórax para trás. Noutra ocasião, teria produzido
um estalo na altura das vértebras lombares, mas agora sentiu apenas um alívio
agradável e rápido. Sorriu satisfeito quando constatou que as costas respondiam
devidamente. Deu alguns passos para contornar a mesa, colocou-se diante da
jarra e serviu-se de uma nova xícara do líquido amargo. Segurou-a com as duas
mãos como se sustentasse um cálice e, por um momento, permitiu que seu olhar
divagasse pela espuma do café. Finalmente, aproximou o recipiente dos lábios e
bebeu um gole longo, quente e electrizante que o levou a fechar os olhos para
aproveitá-lo melhor.
Bem, disse em voz baixa. Terminemos com isto o quanto antes. Alguns
poucos eleitos receberam as doutrinas em segredo, e elas nos foram transmitidas,
embora frequentemente quase soterradas sob o lixo da invenção humana, pelos
maçons. As três condições da sociedade humana estão expressas pela pedra bruta,
pela pedra lascada e pela pedra polida. A pedra bruta e a pedra lascada
expressam nossa condição sob o governo. É bruta por causa da terrível
desigualdade de condição, e lascada porque já não somos uma família e além
disso nos encontramos divididos por diferenças de governo, de classe, de
propriedade e de religião; mas quando nos vemos reunidos numa família nos vemos
representados pela pedra polida. G é a Graça, a Estrela flamífera é a
Tocha da Razão. Aqueles que possuem este conhecimento são certamente Illuminati...
Illuminati? Koch esfregou o
queixo com uma expressão pensativa. Era uma palavra latina ou italiana? Illuminati...,
sim, claro, respondeu com um sorriso. Os iluminados! Só podia ser isso. Aqueles
que têm a luz que não atinge a outros e que mostra os conhecimentos secretos
são iluminados! Que coisa óbvia! Tinha custado a encontrar o significado, mas a
culpa era desse pessoal. Empenhavam-se em ser tão retumbantes, tão pedantes,
tão rebuscados que acabavam obscurecendo o trivial». In César Vidal, O Crime dos
Illuminati, 1958, tradução de António Borges, Relume Dumará, Ediouro
Publicações S.A., 2006, ISBN 857-316-6491-3.
Cortesia
de RDumará/JDACT