quinta-feira, 26 de novembro de 2015

As Filhas do Graal. Elizabeth Chadwick. «Sobrinha, eu ficaria mais feliz se te deixasses ficar pelas montanhas. Há demasiados olhos à espreita nas vilas da planície. Não, respondeu Bridget resolutamente. Ainda não é tempo para isso. Se me retirar agora do mundo…»

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As Montanhas Negras do Alto Languedoc. Verão de 1207
«(…) À entrada da caverna, ouviu vozes masculinas levantarem-se entre a tempestade. Uma era rica, profunda e confiante. A outra voz, mais ligeira, continha os tons exóticos do Outremer (além-mar, os estados cruzados na Terra Santa). Ensopados até aos ossos, os dois homens pararam sob a saliência baixa à entrada da caverna e depois entraram. A conversa cessou assim que os seus olhos se detiveram sobre Bridget. O seu tio Chretien susteve a respiração quando o seu olhar a deixou para pousar na forma imóvel junto à fogueira. Que ela possa caminhar na Luz, disse ele com compaixão. Ela possuía um espírito perfeito. O seu companheiro, mais baixo e de barbas cinzentas, aproximou-se de Magda e agachou-se. A sua mão direita estava gravemente mutilada, faltando-lhe o polegar e mais dois dedos, e os cotos eram de um vermelho franzido e zangado. Tocou a brilhante trança negra de Magda com os dedos que lhe restavam. Era ainda tão jovem, disse ele numa voz que estava perto de se quebrar. Deviam ter-me levado antes a mim. - Ter-nos-iam levado a todos, se lhes dessem a oportunidade. Com um profundo cansaço nos olhos, Chretien abriu os braços para Bridget, que, soltando um pequeno grito ferido, correu para ele, sem se importar com as suas roupas molhadas pela tempestade. Ela sempre soubera que o caminho que percorria era solitário e perigoso, mas nunca antes o sentira tão intensamente como agora. Mais tarde, quando já tinha lavado e preparado o corpo da sua mãe para o túmulo, Bridget sentou-se em frente à fogueira, um copo de vinho forte entre as mãos, e olhou por entre o fumo para os dois homens que eram agora a sua única família, Matthias, o escriba, e Chretien, o irmão mais novo do seu pai. Durante seis anos, ela e a mãe tinham viajado com eles, visitando as aldeias para pregar a via cátara e oferecer cura e conforto aos doentes. A medida que a sua fama crescia, crescera também a hostilidade da Igreja Romana, para quem o catarismo era uma cancerígena heresia a extirpar a todo o custo. O pai dela fora de persuasão cátara. Morrera de uma febre quando Bridget tinha dez anos, mas ao menos morrera na sua cama e livre de perseguição. Na altura, os cátaros podiam movimentar-se abertamente, sem medo de ser assolados pela Igreja de Roma. Agora as coisas eram diferentes. O seu olhar voltou-se para o corpo da mãe, amortalhado num cobertor puído. Quando a ave canora desaparecia, tudo o que restava era uma gaiola vazia.
Quando a tempestade passar, temos de partir, disse ela aos homens. Não temos nada a fazer neste lugar. Chretien pareceu preocupado. Para onde iremos? Apenas os remotos lugares mais altos como Roquefixade e Montségur são seguros, hoje em dia. Quando ele disse Montségur, a visão de um castelo engolido pelo fogo tremeluziu no olho interior de Bridget. Ela viu um céu nocturno coroado de relâmpagos e ouviu os gritos de centenas de pessoas erguidos em sofrimento. Não, Montségur não, replicou ela com um breve abanar da cabeça. Ainda temos muitos amigos que nos darão abrigo e protecção. E eu preciso de obter pergaminhos frescos e penas, disse Matthias. Inconscientemente, esfregou a mão direita mutilada com os dedos da esquerda. Chretien acenou num sinal de concordância, mas continuava de sobrolho franzido. Sobrinha, eu ficaria mais feliz se te deixasses ficar pelas montanhas. Há demasiados olhos à espreita nas vilas da planície. Não, respondeu Bridget resolutamente. Ainda não é tempo para isso. Se me retirar agora do mundo, não encontrarei o pai da minha filha, e foi o desejo da minha mãe no seu leito de morte que eu tomasse um companheiro.
Chretien olhou para a fogueira sem uma palavra, embora o seu maxilar se contraísse. Bridget suspirou suavemente. Para cátaros como o seu tio, gerar uma criança era encurralar um espírito imortal em carne conspurcada. Para a mais antiga religião da mãe, era um sacramento. Ela sabia que, embora desaprovasse, Chretien não a pressionaria a mudar. Com um igual respeito, ela não procurava persuadi-lo da necessidade da sua causa. No silêncio que se gerou, outra imagem perpassou a sua mente, a de uma vigorosa e robusta mulher de meia-idade, de faces vermelhas, pesadas tranças de cabelo cinzento-ferro e um enorme sorriso. Iremos ao encontro de dona Geralda, em Lavaur, disse ela, com calma determinação. É uma cátara convicta e vai socorrer-nos neste momento. Chretien ergueu uma mão para aliviar o rosto quente do calor da fogueira. Se não vais para as montanhas, então Lavaur é provavelmente a segunda melhor alternativa, disse ele, com um relutante aceno de cabeça. Matthias? Bridget ouviu o hesitante acordo de Matthias e soube que, com ou sem a aprovação dos homens, ela ia para Lavaur. A cidade em si não era importante; ela não captara nada da sua essência na visão que tivera, mas a estrada que lá levava, sim. Experimentava uma sensação de aperto no seu âmago, revirando e contraindo os seus macios órgãos internos, como se a criança que a mãe desejara que ela concebesse estivesse já a pontapear o seu ventre. Quando levou a mão à barriga lisa, o sentimento desvaneceu-se, mas não a certeza de que as decisões que agora tomava eram essenciais para o futuro». In Elizabeth Chadwich, As Filhas do Graal, 1993, tradução de Ester Cortegano, Edições Chá das Cinco, 2013, ISBN 978-989-710-050-5.
                     
Cortesia de CdasCinco/JDACT