Rosália
«Aqui
tens o meu passado. A parte mais pura do meu passado. A única digna de ti,
minha querida companheira de tantos e tantos felizes anos árduos. Não sei
porque o evoquei e escrevi. Por um impulso súbito, quase poético, suponho,
embora não conseguisse ainda descobrir-lhe as raízes verdadeiras. Nem quero,
aliás. Para quê? Se precisasse de razões para este livro, fácil me seria recorrer
às habituais, desde as pseudopedagógicas, para ensinar jovens e transviados
(que bom dar conselhos inúteis a ninguém!), às intenções de autocrítica. Não
esquecendo, claro, a Saudade que, segundo parece, em certa altura da vida
impele, irresistível, os homens para a evocação dos velhos amigos, dos velhos
camaradas, dos velhos perfumes... Operação esta sempre difícil quando, como no
meu caso, se não deseja cair no pecado da maioria dos livros de memórias
portugueses, por via de regra meras colecções de anedotas e episódios
pitorescos. Este vício evitei-o, presumo. Mas os outros? Os perigos que me
apontaste com discernimento lúcido, assim que soubeste do meu plano? Ter-me-ia
desviado a tempo dos abismos abertos? Refiro-me em primeiro lugar ao perigo
inerente à natureza do próprio género memorialista e que consiste em não poder fugir
à fatalidade de me apresentar aos olhos do mundo como um ser excepcional que
condescendesse em vir à praça pública expor e explicar a trajectória do seu
talento merecedor dum tratado pretensioso de 300 páginas! O outro perigo reside
na atitude contrária, para contrabalançar esse pendor: o uso imorigerado da
auto-ironia, capaz, pelo seu lado, de dissolver o halo mítico tão necessário à
reputação ingénua dos poetas.
A
estes receios objectei que o primeiro risco teria de corrê-lo, por complacência
lógica. Para haver livro, que remédio não resignar-me, desconvencido, a parecer
o centro do mundo! Mas não bastaria o facto de relatar as minhas lutas, dificuldades
e desajustes para anular qualquer suspeita de presunção de me considerar um
ente excepcional, desses que só se julgam verdadeiramente nascidos quando
encontram a Voz Própria? Assentei que sim. De excepcional, portanto, neste
livro só talvez a coragem, por sinal mais vistosa do que real, com que revelo
alguns emperros de ofício e não poderia ocultar, mesmo que quisesse, dada a
existência em documentos públicos das minhas actividades artísticas na infância
e na adolescência.
Quanto
à auto-ironia, à denúncia de pecadilhos e deficiências, afinal mínimas, não
resisto à tentação de transcrever este elucidativo trecho de Renan nos seus Souvenirs d'enfance et de jeunesse em
que meditei com profundidade longa: Je
termine ici ces souvenirs, en demandant pardon au lecteur de la faute
insupportable qu’untel genre fait commettre à chaque ligne. L’amour-propre est
si habile en ses calculs secrets que, tout en faisant la critique de soi-même,
on est suspect de ne pas y aller de franc jeu. Le danger, en pareil cas, est,
par une petite rouerie inconsciente, d’avouer, avec une humilité sans grand
mérite, des défauts légers et tout extérieurs pour s’attribuer par ricochet de
grandes qualités. Ah! le subtil démon que celui de la vanité! Assim
advertido, reli o Eclesiastes (Vaidade!
Tudo vaidade!) e, sem mais hesitações, lancei-me ao meu gostoso pentear de
nuvens e lembranças, confiado no instinto, o grande guia das aves e dos poetas.
E então, no vaivém dos fins-de-semana, gastei perto dum ano neste trabalho,
ansioso e febril de terminá-lo o mais depressa possível...
Sabes
para quê?... Para sentir finalmente a alegria de escrever o teu nome nas
páginas iniciais deste volume, Rosália. Embora, por mim, sempre o
visse impresso, a tinta invisível, em todos os meus livros anteriores, que
todos te pertencem». In José Gomes Ferreira, A Memória das Palavras
(O Gosto de Falar de Mim), 1965, Publicações dom Quixote, Lisboa, 1991, ISBN 972-200-855-2.
Cortesia
de PdQuixote/JDACT