«A todos os que têm sonhos que os
ajudam a melhorar; a todos os que querem o melhor para os outros; vivemos em
dois mundos, no da realidade forjamos o nosso carácter, enquanto que no reino
dos sonhos descobrimos o melhor de nós mesmos»
A Fundação. Arquimaes, o sábio dos
sábios
«A primeira página da lenda de
Arturo Adragón, o valente cavaleiro que liderou um exército e fundou um mítico
reino de justiça, isento de guerras, de tirania e de bruxaria, escreveu-se uma
noite, quando vinte soldados a cavalo invadiram a rua principal da aldeia de
Drácamont. Envoltos em grossas capas de pano, armados até aos dentes,
apetrechados com cotas de malha, elmos e escudos, estes ginetes vinham para
cumprir uma missão que só poderia realizar-se ao abrigo da escuridão, altura em
que se levam a cabo as maiores infâmias. As ruas lamacentas e encharcadas
encontravam-se solitárias. Os cães que se cruzaram no seu caminho fugiram em
silêncio, como que pressentindo o perigo. As ratazanas, para não esbarrarem
neles, optaram por abandonar os restos de comida putrefacta e refugiaram-se nas
suas tocas escuras. O odor a morte acompanhava-os. Os soldados sabiam que,
apesar do seu sigilo, os habitantes da insignificante povoação de Drácamont os
espiavam através das portas e das janelas entreabertas, mas estavam tão seguros
do seu poder que não se preocupavam com isso. Terem chegado aqui sem serem
detectados pelos homens do rei Benicius, em cujas terras haviam penetrado
clandestinamente, fora a parte mais difícil do trabalho. Estavam cientes de que
as suas vidas corriam perigo, mas a recompensa e os juramentos de fidelidade incluíam
este tipo de riscos. Por seu lado, os humildes camponeses de Drácamont
preferiram ignorar a sua presença. Haviam aprendido que era melhor não se
confrontarem com eles. Por isso pediram ao céu que eles, nesta escura e suja
noite que não pressagiava nada de bom, voltassem a sair da região o mais
depressa possível. Dentro em pouco voltaremos a casa, informou-os o capitão
Cromell. Se tudo correr bem, haverá uma boa recompensa para todos. Entretanto,
nos arredores da aldeia, perto do cemitério, no interior de um velho torreão,
havia uma grande actividade. A salvo dos olhares indiscretos e com as janelas
fechadas para evitar que a luz das velas chamasse a atenção, os ajudantes de
Arquimaes, o alquimista, trabalhavam com frenesim. Arturo, o seu jovem
ajudante, verteu um líquido negro e viscoso, que parecia ter vida própria, para
dentro de um pequeno frasco de vidro, onde o seu mestre mergulhou a pena de
aço; impregnou-a de tinta e começou a escrever sobre o curtido pergaminho
amarelento que se estendia à sua frente. Com pulso firme e delicado, Arquimaes
desenhou umas belíssimas letras que distribuiu em linhas rectas e formou um
conjunto harmonioso, ordenado e pleno de mistério. Um texto encriptado que
nenhum mortal poderia decifrar, uma vez que estava escrito numa língua secreta
inventada pelo próprio Arquimaes, tal como costumavam fazer todos os
alquimistas quando queriam proteger os seus inventos.
De repente, o silêncio quebrou-se
e a noite encheu-se de ruídos alarmantes: o adejar de vários pássaros que
levantam voo apressados, cascos de cavalos que golpeiam o solo empedrado,
gritos que ordenam e comandam os soldados... A partir desse momento, o caos
apoderou-se da escuridão e, antes que os habitantes do torreão tivessem tempo
de reagir, o inquietante ruído de armaduras, espadas e escudos chocando entre
si com violência fê-los compreender que o perigo se abatia sobre eles. O som do
aço sempre era perigoso. Arquimaes parou de escrever quando a porta do seu
gabinete se abriu bruscamente e uma vaga de ar gélido penetrou na sala,
acompanhada por vários soldados que emitiam grunhidos ao mesmo tempo que
empurravam e aprisionavam os ajudantes. Que ninguém se mexa!, rugiu o capitão
Cromell, com a espada em riste e o rosto enfurecido. Cumprimos ordens do conde
Eric Morfidio! O impulsivo Arturo tentou impedir a entrada dos soldados, sem se
dar conta de que a sua pouca idade não iria constituir nenhum obstáculo para aqueles
calejados guerreiros, habituados a lutar contra todos os que os enfrentassem,
tivessem eles a idade que tivessem. O que fazeis?, gritou dando um passo na
direcção dos intrusos, enfrentando o capitão, que já o olhava com raiva. Não
podeis entrar aqui! Este lugar é sagrado! É o laboratório de Arquimaes!
Encontra-se sob a protecção do rei Arco de Benicius e estamos nos seus domínios!
A espada de um soldado ergueu-se, disposta a golpear, contudo uma voz poderosa
impediu-o no último momento: Quieto! Não viemos aqui para matar ninguém! A
menos que seja preciso...» In Santiago Garcia Clairac, O Reino dos
Sonhos, O Exército Negro, 2006, tradução de Ana Maria Silva, Planeta
Manuscritos, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-657-020-0.
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