Inês de Castro: da tragédia ao melodrama
«(…) Notável é a
dinâmica discursiva que o poeta imprime a este primeiro confronto entre o rei e
os conselheiros que o IV acto prolonga e agudiza. Termina a cena com o
recrudescimento da acção, provocado pela indecisão régia que, verdadeira
analepse, conduzirá à morte de dona Inês: I-vos aparelhar, que em vós me
salvo. A cena II é composta por um monólogo do rei, introduzido por uma
invocação a Deus, bem ao gosto dos autores da literatura de Quinhentos:
Senhor, que estás nos
Ceos e vês as almas,
que cuidam, que propõem,
que determinam,
alumia minha alma, não
se cegue
no perigo em que está.
Não sei que siga.
Entre medo e conselho
fico agora:
Matar injustamente é grã
crueza,
Socorrer a mal publico é
piedade.
Dua parte receo, mas doutra
ouso…
E logo se seguem, neste monólogo do rei, reflexões que o coro, no final
do acto, prolonga, à maneira senequiana, tema coral predilecto de Séneca, colhido
nos poetas clássicos, designadamente Horácio e Virgílio, e que ecoam, num entretecido
de reminiscências clássicas, o famoso O fortunatos nimium si bona norint/agricolas das Geórgicas do Mantuano:
Ó vida felicíssima a que vive
o pobre lavrador só no seu campo,
seguro da fortuna e descanso,
livre destes desastres que cá reinam!
Ninguém menos é rei que quem tem reino.
Ah, que não é isto estado, é cativeiro,
De muitos desejado, mas mal crido…
É este monólogo um dos trechos mais inspirados da Castro, pois
combina a expressão lírica adequada à vivência individual de um rei,
sobrecarregado com os deveres de ofício, com elementos que são referentes
ideológicos e culturais da mentalidade de então: o encarecimento da aurea
mediocritas, a denúncia dos vícios da uita aulica, o socratismo
cristão que os versos finais traduzem:
...e me livra algum tempo, antes que moura,
de tanta obrigação pera que possa
conhecer-me melhor e a ti voar.
O acto II é o único em que, antes do êxodo, o Coro se não pronuncia no
decurso da acção, mas tem dela um perfeito conhecimento e adquire saber
político para entoar o canticum final. O Coro I, em estrofe sáfica,
esquema métrico usado por Teive, na Ioannes princeps, considerada fonte
da Castro, versa o tema dos trabalhos do rei, das responsabilidades do poder. O
Coro II, numa sequência de versos de seis sílabas, retoma o tema da aurea mediocritas,
canta a felicidade dos pequenos do mundo. O Acto III, em absoluto contraste com
o locus amoenus, com a uisio poética do acto I, apresenta-nos a
protagonista num cenário de pesadelo, o locus horrendus.
Nunca mais tarde pera mim que agora
amanheceu. O sol claro e fermoso,
como alegras os olhos, que esta noite
cuidaram não te ver! Ó noite triste
Ó noite escura, quão comprida foste...
Envolta agora numa atmosfera de tensão e de presságio, conta à ama o
sonho triste, cheio de elementos simbólicos do ponto de vista poético e
dramático. A própria paisagem se torna reveladora da mudança da fortuna, numa
espécie de conivência entre a natureza e a fatalidade. Entre a esperança e o
medo, spes et metus, dois elementos que, segundo a retórica, preparam o pathos,
se confessa a Castro: Porque temo perder o bem que espero. A terminar
esta cena inicial do acto III, Ferreira deixa no ar uma nota lírica de esperança,
trazida pelas palavras da Ama, que são um convite à alegria e à confiança. Surge
de novo o locus amoenus, onde Inês deveria desfrutar de todos os bens e
gozar feliz os seus dias:
Ah, não te agoures mal, que melhor fado
o teu será, senhora! Quem tristeza
de sua vontade chama, mal a pode
lançar de si, que às vezes n’ alegria
entra tão furiosa que a destrui.
Mas esta abertura, esta
clareira momentânea de novo se fecha, para ser ainda maior o efeito trágico da
notícia da morte iminente da heroína, na cena seguinte. O dramaturgo quis
assim, neste acto, criar e enriquecer a peripécia, ao fazer evoluir aceleradamente
a acção para uma situação de infelicidade ou vice-versa, segundo os preceitos
de Aristóteles». In Nair Nazaré Castro Soares, Inês de Castro, Da Tragédia ao Melodrama,
Universidade de Coimbra, As Artes de Prometeu, homenagem a Ana Paula
Quintela, Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.
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