Descrição da guerra em Guernica
«O pássaro; a sua anatomia
rápida; forma cheia de pressa,
que se condensa
apenas o bastante
para ser visível no céu,
sem o ferir;
modelo doutros voos: nuvens;
e vento leve, folhas;
agora, atónito, abre as asas
no deserto da mesa;
tenta gritar às falsas aves
que a morte é diferente:
cruzar o céu com a suavidade
dum
rumor e sumir-se».
Poema de Carlos Oliveira (1921-1981), in
‘Os Poemas da Minha Vida’
A Morte de Isolda
«Nesta fluidez contínua de um
tecido vivo
que se distende arfando como um
longo sexo
viscosamente se enrolando em torno
ao mundo
que não penetra mas ansiosamente
estrangula em húmidos anéis
fosforescentes de ansiedade doce
e resignada à morte
em roncos e estridências
lacrimosas,
palpita a frustração do amor maldito
porque de um filtro só nasceu.
Por mais que de crescendos delirantes
se evolem as volutas de uma chama
ambígua,
nesta fluidez sem tempo não há
gozo algum,
mas o prazer remoto do que não foi
vivido
senão como entressonho e fatal gesto;
e mesmo este balanço largamente harmónico
que se exaspera e expira em tão agudas
posses
é cópula mental.
Nesta doçura que ao silêncio
imóvel
acaba retornando, não há uma paz dos
rostos que se pousam
enquanto os sexos se demoram
penetrados
no puro e tão tranquilo esgotamento
da chegada
que só ternura torna simultânea.
Não há, mas só tristeza infinda e
fina
e tão terrível de que,
estrangulado,
o amor no mundo é morte
impenetrável: dois
seres que o sexo destruiu,
estéreis
como o sopro da serpente eterna.
Fica-nos o gosto da piedade.
E uma vontade de enterrá-los juntos
p'ra que talvez na morte, imaginada,
se conheçam
melhor do que se amaram. E também
o ardor
de uma impotência que se quis só
sexo
virgem demais para um amor da vida».
Poema de Jorge de Sena (1919-1978), in
‘Maria Alzira Seixo’
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