Bárbaros.
Cristãos. Muçulmanos
«(…) Mas o que caracteriza a Idade Média ocidental é
a tendência para resolver todos os contributos culturais de outras épocas ou de
outras civilizações segundo a perspectiva cristã. Quando hoje se discute se a
constituição europeia deve mencionar as raízes cristãs da Europa, objecta-se
com justeza que a Europa também tem raízes greco-romanas e raízes judaicas
(basta pensar na importância da Bíblia), para não falar das antigas civilizações
pré-cristãs e, portanto, das mitologias céltica, germânica ou escandinava. Mas é
certo que no tocante à Europa medieval deve falar-se de raízes cristãs. Na
Idade Média, a partir da época dos padres da Igreja, tudo é relido e traduzido à
luz da nova religião. A Bíblia só será conhecida na tradução latina, a Vulgata
de São Jerónimo, e em traduções latinas serão conhecidos os autores da filosofia
grega, usados para demonstrar a sua convergência com os princípios da teologia
cristã (e só a isso aspira a monumental síntese filosófica de Tomás de Aquino).
Os séculos medievais não são a Idade das Trevas,
as Dark Ages dos autores
anglófonos
Se com esta expressão se pretende aludir a séculos de decadência física
e cultural agitados por terrores sem fim, fanatismo, intolerância, pestilências,
fomes e carnificinas, este modelo poderá ser aplicado, em parte, aos séculos
que decorrem da queda do Império Romano até ao novo milénio ou, pelo menos, ao
renascimento carolíngio. Mas os tempos anteriores ao ano 1000 foram um tanto ou
quanto escuros porque as invasões bárbaras, que durante alguns séculos
fustigaram a Europa, destruíram aos poucos a civilização romana: as cidades
estavam despovoadas ou em ruínas, as grandes estradas já não recebiam cuidados
e desapareciam nos matagais, estavam esquecidas técnicas fundamentais como a
extracção dos metais e da pedra, as terras de cultivo estavam ao abandono e,
antes do fim do milénio ou pelo menos antes da reforma feudal de Carlos Magno,
zonas agrícolas inteiras eram de novo florestas.
Se, porém, formos em busca das raízes da cultura europeia veremos
que nestes séculos escuros surgiram as línguas que hoje falamos e se instalou,
por um lado, uma civilização dita romano-bárbara ou romano-germânica e, por
outro, a civilização bizantina e que ambas modificaram profundamente as
estruturas do direito. Nestes séculos agigantam-se figuras de grande vigor
intelectual como Boécio (nascido exactamente quando o Império Romano se
desmoronava e justamente chamado o último
romano, Beda e os mestres da Escola Palatina de Carlos Magno, como Alcuíno
ou Rábano Mauro, até João Escoto Eriúgena. Os irlandeses, convertidos ao
cristianismo, fundam mosteiros onde são estudados os textos antigos, e são os
monges da Hibérnia que reevangelizam regiões inteiras da Europa continental e
inventam ao mesmo tempo uma originalíssima forma de arte da alta Idade Média,
representada pelas miniaturas do Livro de Kells e outros manuscritos análogos.
Apesar destas manifestações culturais, a Idade Média anterior ao
ano 1000 era de certeza um período de indigência, fome e insegurança em que
circulavam histórias de um santo subitamente aparecido que recuperava uma foice
que o aldeão deixara cair ao poço: histórias que nos permitem compreender que o
ferro se tornara naquela época tão raro que a perda da foice podia significar a
impossibilidade definitiva de amanhar a terra. Ao falar nos seus Historiarum
Libri de acontecimentos ocorridos apenas 30 anos depois do fim do milénio,
Rodolfo, o Glabro, descreve-nos uma escassez provocada por um tempo tão
inclemente que, principalmente por causa das inundações, não se conseguia
encontrar momento propício nem para a sementeira nem para a colheita. A fome
tornava esqueléticos os pobres e os ricos, e, quando já não havia mais animais para
comer, comia-se toda a espécie de bicho morto e outras coisas que só de falar causam calafrios, tendo havido quem
se visse obrigado a ingerir carne humana. Os viajantes eram agredidos,
abatidos, cortados em pedaços e cozidos, e aqueles que se deitavam ao caminho
na esperança de fugir à fome eram degolados de noite e comidos por quem os
hospedava. Havia quem atraísse crianças, mostrando-lhes um fruto ou um ovo,
para as esganar e comer. Em muitos sítios foram exumados e comidos cadáveres: certo
homem que levara carne humana já cozida para o mercado de Tournus foi descoberto
e colocado na fogueira, mas depois foi também queimado outro que fora de noite
tirar a carne de onde a haviam enterrado». In Umberto Eco (organização), Idade
Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN: 978-972-204-479-0.
Cortesia
PdQuixote/JDACT