Bárbaros.
Cristãos. Muçulmanos
«Para não ter a mesma extensão dos volumes a que se refere, uma
introdução à Idade Média deveria limitar-se a dizer que a Idade Média é o período
que começa quando o Império Romano se dissolve e que, fundindo a cultura
latina, tendo o cristianismo como aglutinante, com a dos povos que pouco a
pouco foram invadindo o império, dá origem ao que hoje chamamos Europa, com as
suas nações, as línguas que ainda hoje falamos e as instituições que, apesar de
mudanças e revoluções, são ainda as nossas. Seria muito, mas muito pouco.
Pesam sobre a Idade Média muitos estereótipos, e por isso será conveniente
precisar, antes de mais, que a Idade Média não é o que o cidadão (ã) comum
pensa, o que muitos manuais escolares compostos à pressa fazem crer e que o cinema
e a televisão têm apresentado. A primeira coisa que, portanto, deve dizer-se é
o que a Idade Média não é. Em seguida, deve investigar-se o que é que a Idade Média
nos deixou e ainda hoje é actual. Por fim, em que sentido ela foi radicalmente
diferente do tempo em que vivemos.
O que a Idade Média
não é. A Idade Média não é um
século
Não é um século, como o século XVI ou o século XVII, nem um período
bem definido e com características reconhecíveis como o Renascimento, o Barroco
ou o Romantismo. É uma sucessão de séculos assim chamada pelo humanista Flavio
Biondo, que viveu no século XV. Como todos os humanistas, Biondo preconizava um
regresso à cultura da Antiguidade Clássica e, por assim dizer, colocava entre
parêntesis os séculos (em que ele via uma época de decadência) que decorreram
entre a queda do Império Romano (476)
e o seu tempo, embora o destino haja decidido que, afinal, Flavio Biondo
pertencesse também à Idade Média, por ter morrido em 1463 e se ter convencionalmente fixado o fim da Idade Média no ano
de 1492, o ano do descobrimento
da América e da expulsão dos mouros de Espanha. 1492 menos 476 é igual
a 1016. Mil e dezasseis são muitos
anos, e é difícil crer que o modo de viver e de pensar se tenha mantido imutável
ao longo de um período tão extenso e em que ocorreram muitos factos históricos
hoje estudados nas escolas (das invasões bárbaras ao renascimento carolíngio e
ao feudalismo, da expansão dos árabes ao nascimento das monarquias europeias,
das lutas entre a Igreja e o império às Cruzadas, de Marco Polo a Cristóvão
Colombo, de Dante à conquista de Constantinopla pelos turcos).
Há uma experiência interessante que consiste em indagar de uma
pessoa culta (desde que não seja especialista em assuntos medievais) quantos
anos decorreram entre Santo Agostinho, considerado o primeiro pensador
medieval, se bem que tenha morrido antes da queda do Império Romano, e São Tomás
de Aquino, pois são estudados ainda hoje como representantes máximos do
pensamento cristão. Pois bem, não são muitas as pessoas que dão a resposta certa,
oito séculos, mais ou menos tantos como os que nos separam de São Tomás. Embora
naqueles tempos tudo corresse mais lentamente do que hoje, em oito séculos podem
acontecer muitas coisas. Por isso a Idade Média é, perdoe-se-me a tautologia, uma
idade como a Idade Antiga ou a Idade Moderna. A Idade Antiga, ou Idade Clássica,
é uma sucessão de séculos que vão dos primeiros ao dos pré-homéricos aos poetas
do baixo-império latino, dos pré-socráticos aos estoicos, de Platão a Plotino,
da queda de Troia à queda de Roma. Do mesmo modo, a Idade Moderna vai do Renascimento
à Revolução Francesa, e a ela pertencem tanto Rafael como Tiepolo, tanto
Leonardo como a Encyclopédie, tanto Pico della Mirandola como Vico,
tanto Palestrina como Mozart. Devemos, pois, tratar a história da Idade Média
na convicção de ter havido muitas idades
médias e, se a alternativa passa pela adopção de uma data também ela excessivamente
rígida, que, pelo menos, tenha em consideração algumas viragens da história. É
assim que costuma distinguir-se a alta Idade Média, que vai da queda do Império
Romano ao ano 1000 (ou, pelo menos, a Carlos Magno), uma Idade Média de transição,
a do chamado renascimento depois do ano 1000, e finalmente uma baixa Idade Média
que, apesar das conotações negativas que a palavra baixa poderá sugerir, é a época gloriosa em que Dante conclui a Divina
Comédia, Petrarca e Boccaccio escrevem e floresce o humanismo florentino.
A Idade Média não é um período exclusivo da
civilização europeia
Ao mesmo tempo que a Idade Média ocidental, ocorre a do império do
Oriente, que continua viva nos esplendores de Bizâncio durante mil anos depois
da queda de Roma. Nestes mesmos séculos floresce uma grande civilização árabe
enquanto na Europa circula mais ou menos clandestinamente, mas vivíssima, uma
cultura hebraica. As fronteiras que dividem estas diversas tradições culturais
não são tão nítidas como hoje se pensa (quando predomina a imagem do
conflito entre muçulmanos e cristãos no decurso das Cruzadas). A filosofia
europeia conhece Aristóteles e outros autores grecos através de traduções árabes,
e a medicina ocidental vale-se da experiência dos árabes. As relações entre
eruditos cristãos e árabes, ainda que não proclamadas em voz alta, são frequentes».
In
Umberto Eco (organização), Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN: 978-972-204-479-0.
Cortesia
PdQuixote/JDACT