Os Filhos da Luz. Baviera, 1787
«(…) Aqueles que possuem
este conhecimento são certamente Illuminati, tornou a ler. Hiram é nosso
Grão-Mestre fictício, morto pela redenção dos escravos; os Nove Mestres são os Fundadores
da Ordem. A Maçonaria é a Arte Real, na medida em que nos ensina a caminhar sem
travas, e a governar a nós mesmos. O olhar de Koch desceu até ao fim da página
e deu com uma assinatura na qual, com toda a nitidez, podia se ler Espartaco. Espartaco...
Veja só. Nada menos do que Espartaco. Serviu outro café e o tomou em pequenos
goles enquanto cruzava o aposento com passos tranquilos e pausados. Estava
mergulhado nas reflexões mais profundas e, quando ocorria tal eventualidade, a
rapidez com que sua mente funcionava contrastava com a lentidão que impunha a
seus gestos. Finalmente, parou, respirou fundo e murmurou: Lebendig,
Lebendig...
Os Filhos da Luz. França, Maio de 1793
Enforquem-nos! Enforquem-nos!
Quem lançava os gritos era um homem cujo rosto parecia cinzelado pelo sol do norte
da França. Avermelhado, seco, enrugado, toda a força de seu corpo endurecido parecia
se concentrar em volta de seus lábios, uns lábios fendidos que pediam morte. Sim,
enforquem-nos!, repetiu como um eco uma anciã. Enforcá-los?, respondeu outra
voz. À paulada! Deviam ser mortos à paulada! Pena não termos uma..., uma
daquelas máquinas que eles têm em Paris, lamentou-se um rapaz de no máximo
quinze anos. Karl deu uma olhada nos prisioneiros. Era óbvio que estavam
tomados por uma insuportável sensação de pânico. Quantos eram. Um, dois...,
seis. Nada menos do que seis. E era com seis homens que o governo republicano
de Paris pretendia impor seu programa político? Com certeza, ou eles se
valorizavam em excesso ou tinham uma ideia muito pobre dos camponeses
franceses. É verdade que eles impressionavam com aquelas casacas azuis, com
aquelas divisas enormes presas aos chapéus e, principalmente, com os sabres e
as pistolas, mas como lhes tinha ocorrido pisotear de forma tão ousada os
sentimentos daquelas pessoas?
Acabem com eles!
Acabem..., com máquinas. As pedradas. Vocês têm alguma coisa a dizer, perguntou
o que assumia o comando. Alguma declaração a fazer? Não, não dava a
impressão de que os detidos estivessem para muitas declarações. Os cinco
soldados estavam realmente apavorados, e não era para menos, e quanto ao mais
graduado..., era óbvio que tentava manter o ânimo, mas seu bigode tremia de
maneira incómoda. Estava, no mínimo, tão apavorado quanto os seus subordinados.
Pobre infeliz! Dá para saber, por exemplo, continuou o chefe improvisado,
pru 'quê tinham que vir neste povoado p’ra queimar a igreja? Karl teve
que intuir as últimas palavras. A pergunta mal tinha chegado ao verbo queimar
quando um clamor irado, feroz, com ressonâncias de morte, preencheu o ar
espesso e quente que os envolvia. Sim, pru'guê?. Pru'quê?, gritavam num
francês áspero, mastigado e sombrio os habitantes do povoado.
Karl disse a si mesmo
que, provavelmente, a única resposta era: por uma mistura de defeitos
humanos..., soberba, orgulho, sectarismo, nevoeiro mental, ressentimento...
Tudo aquilo tinha-se misturado nos corações dos soldados e, como resultado directo,
tinham decidido proclamar a liberdade universal ateando fogo na modesta igreja
do povoado. Era preciso reconhecer que não deixava de ser uma ideia peculiar do
que significava ajudar a liberdade. Para assegurá-la, acabavam com a liberdade
de culto. Era, não havia como duvidar, um dos muitos paradoxos daquela revolução
que parecia não terminar nunca. Certamente, os homens de Paris, e seus executores
de províncias, podiam emitir uma argumentação para justificar aquele acto de
destruição. Como a Igreja Católica era um instrumento de opressão, a sua
pulverização, a sua incineração, melhor dizendo, acabaria tendo como resultado
imediato a liberdade do género humano. Talvez, mas aquela liberdade conseguida
a golpes de tocha e tiros de pistola não conseguia convencer Karl. Pior: na verdade,
dava-lhe uma sensação de inquietude muito parecida com a angústia. Dá no mesmo.
Dá no mesmo!, começou a dizer um homenzinho de uns quarenta anos, calvo e
usando um calção ridiculamente amarelo. Se os matarmos..., se os matarmos...
Nada de se, Pierre, interrompeu o que
tinha defendido que os enforcassem. Vamos matá-los. Vamos fazer com que esse
pessoal de Paris receba um castigo. Mas..., o que é que eles estão pensando?
Eles acham que podem vir até aqui e nos tirar o trigo e levar o nosso vinho e
ainda cag… na Virgem? É isso o que eles acham? Ah, isso não, isso não. Vamos,
uma corda.
Em outras circunstâncias, Karl teria tentado argumentar com aquelas
pessoas que se tinham transformado numa massa enfurecida que gritava os seus
desejos de morte. Sim, sem dúvida, teria feito isso, mas naquele povoado do
norte da França... Durante meses, um pequeno grupo de advogados e jornalistas,
de nobres progressistas, de maçons, tinha empurrado a velha monarquia dos Capeto para o aniquilamento. Mas o que
tinha acontecido depois era muito diferente daquilo que a Inglaterra tinha
vivido um século antes. Não havia chegado ao poder um revolucionário piedoso
como Cromwell ou uma rainha religiosa e prudente como Ana. Não. Os novos
governantes da França estavam convencidos de que podiam mudar o país com a
mesma facilidade com que um oleiro dá a um pedaço de barro a forma que quer.
Bem, talvez pudessem fazer isso em Paris, e Karl tinha suas dúvidas, mas no
campo... Aqui está a corda, gritou uma mulher bonita, viçosa, alta. Precisamos
de mais, disse o homem seco com um tom de voz que oscilava entre a reprovação
pela escassez e a pressa em corrigir isso». In César Vidal, O Crime dos
Illuminati, 1958, tradução de António Borges, Relume Dumará, Ediouro
Publicações S.A., 2006, ISBN 857-316-6491-3.
Cortesia
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