«(…) Desemboca no tédio ou na
apatia a partir do momento em que se realiza (neste sentido a felicidade ideal
seria uma felicidade sempre saciada, sempre renascida que evitaria a dupla pena
da frustração e de plenitude). Por fim, ilude o sofrimento ao ponto de se
encontrar desarmado perante ele a partir do momento em que surge. No primeiro
caso a própria abstracção da felicidade explica a sua sedução e a angústia que
origina. Não somente desconfiamos dos paraísos préfabricados como nunca estamos
seguros de sermos verdadeiramente felizes. Querer saber se o somos é já sinal
de o não sermos. Daí que a predilecção por este estado se encontre também
ligada a dois comportamentos, o conformismo e a inveja, as doenças
conjuntas da cultura democrática: o alinhamento pelos prazeres
maioritários, a atracção pelos eleitos que a sorte parece ter favorecido.
No segundo, a preocupação com a felicidade é contemporânea na Europa, na sua
forma laica, do advento da banalidade, esse novo regime temporal que surgiu com
o dealbar dos tempos modernos e viu triunfar a vida profana, reduzida ao seu prosaísmo,
após a retirada de Deus. A banalidade ou a vitória da ordem burguesa:
mediocridade, sensaboria, vulgaridade. Por último, um tal objectivo, visando
eliminar a dor, substitui-a apesar de tudo no âmago do sistema. Ainda que o homem
de hoje igualmente sofra por não querer mais sofrer, como também se pode
adoecer à força de procurar a saúde perfeita. O nosso tempo conta-nos uma
estranha fábula: a de uma sociedade dedicada ao hedonismo, para a qual tudo se
torna causa de irritação e de suplício. A infelicidade não é só a infelicidade:
é, ainda pior, o fracasso da felicidade.
Por dever de felicidade, entendo
portanto essa ideologia própria da segunda metade do século XX e que conduz a
tudo avaliar sob o prisma do prazer e do desagrado, esse convite à euforia que
lança no opróbrio e na dor os que não lhe correspondam. Duplo postulado: por um
lado, tirar o melhor partido da vida; pelo outro, afligir-se, penalizar-se por
tal não ser conseguido. Perversão a mais bela das ideias: a possibilidade
concedida a cada um de ser senhor do seu destino e de melhorar as suas
condições de existência. Como pode uma das palavras de ordem emancipadoras das
Luzes, o direito à felicidade, transformar-se em dogma, em catecismo colectivo?
Esta é a aventura que aqui procuraremos contar. Tão múltiplos são os
significados do bem supremo que nos iremos fixar então em alguns ideais
colectivos: saúde, riqueza, corpo, conforto, bem-estar, como tantos outros talismãs
sobre os quais deve poisar, qual pássaro atraído pelo isco. Os meios tomam o
lugar dos fins e revelam a sua insuficiência a partir do momento em que o
encantamento procurado não é alcançado. Se bem que, cruel engano, nós nos afastemos
com frequência da felicidade através dos meios que verdadeiramente nos deveriam
dela aproximar.
Daí os frequentes equívocos a seu
respeito: que deve ser reivindicado como um dever, aprendido como uma matéria escolar,
construído como uma casa; que se compra, qual moeda, que outros enfim o possuem
de fonte segura e que basta imitá-los para sermos inundados como eles pela
mesma aura. Contrariamente ao lugar comum sem descanso repetido desde Aristóteles,
mas para ele a palavra tinha um outro sentido, não é verdade que todos nós
procuraríamos a felicidade, valor ocidental e historicamente datado. Outros
existem como liberdade, justiça, amor, amizade que ganham supremacia sobre ela.
E como saber que todos os homens procuram desde a origem os tempos sem cair
em generalidades vagas? Não se trata de estar contra a felicidade mas sim
contra a transformação desse frágil sentimento num pensamento colectivo
estupidificante perante o qual todos se deverão inclinar nos aspectos químicos,
espirituais, psicológicos, informáticos, religiosos.
Os saberes e as ciências mais
elaborados devem confessar a sua impotência para garantirem a felicidade aos
povos e aos indivíduos. Esta, de cada vez que a afloramos, produz o efeito de
uma graça, de um favor, não de um interesse, de uma conduta específica. E
quanto mais conhecemos as bondades do mundo, a sorte, os prazeres, a ventura,
mais abandonamos o sonho de atingir a beatitude com letra maiúscula. Teremos
desde já desejo de responder ao jovem Mirabeau: amo de mais a vida para não
querer ser feliz!
O paraíso está onde eu estiver. A vida
como ilusão e desilusão
Este mundo não é mais que uma ponte.
Atravessa-a mas nela não te detenhas. In Henn. Apócrifos. No século XV
em França e em Itália, ocorreram autos-de-fé colectivos onde sobre as achas do
prazer os homens e as mulheres de livre vontade e como sinal de renúncia às
vaidades lançavam às chamas cartas de jogar, livros, jóias, perucas, perfumes.
Acontece que nesse fim da Idade Média, marcado por uma forte paixão pela vida,
a dúvida não era permitida: a plenitude só existia em Deus e fora d’Ele só
havia engano e dissimulação. Era então necessário relembrar constantemente aos
mortais a insignificância dos prazeres humanos, quando comparados com aqueles
que lhes estavam reservados junto de Nosso Senhor. Contrariamente ao célebre
aforismo de Saint-Just, a felicidade nunca foi uma ideia nova na Europa e desde
as origens, fiel à sua herança grega, o cristianismo sempre lhe reconheceu a
aspiração. Simplesmente coloco fora do alcance humano, no Paraíso Terreal ou
nos céus, o século XVIII contentar-se-á em devolvê-la aqui para o mundo terreno».
In
Pascal Bruckner, A Euforia Perpétua, Ensaio sobre o Dever da Felicidade,
tradução de António Belo, Editorial Notícias, 2002, ISBN 972-972-461-220-1.
Cortesia
EditorialN/JDACT