O
Teor Violento da Vida
«(…) Durante o terror borgonhês em Paris, em 1411, uma das vítimas, o senhor Mansart
du Bois, tendo-lhe o carrasco pedido perdão, segundo o costume, não só lho concede de todo o coração, mas ainda lhe
diz que o abrace. Havia sempre grande multidão de povo e quase todos derramavam comovidas lágrimas. Quando os criminosos
eram grandes senhores os homens do povo tinham a satisfação de ver aplicado o
rigor da justiça e ao mesmo tempo verificar a inconstância da fortuna
exemplificada por forma mais impressionante do que num sermão ou numa pintura.
O magistrado punha todo o cuidado em que nada faltasse para efeito do espectáculo: o condenado era
conduzido ao cadafalso vestido com o garbo devido à sua elevada condição. Jean Montaigu,
grão-mestre do palácio do rei, vítima de João Sem Medo, é colocado numa
carreta precedida por dois trombeteiros. Leva as suas vestes de gala, gorro,
capa, as meias metade vermelhas metade brancas e as esporas de ouro. Estas são
deixadas nos pés do corpo degolado, suspenso da trave. Por ordem especial de Luís XI a cabeça de Mestre
Oudart de Bussy, que recusara um lugar no Parlamento, foi desenterrada e
exposta na praça de Hesdin, coberta com um gorro escarlate forrado de peles selon la mode des conseillers du
Parlament e com versos explicativos.
Mais raros do que as procissões e as
execuções eram os sermões dos pregadores itinerantes que vinham despertar o
povo com a sua eloquência. O moderno leitor de jornais não é capaz de imaginar
a violência da impressão causada pela palavra sobre espíritos ignorantes e
desprovidos de qualquer ideal. O franciscano frei Ricardo pregou em Paris, em 1429, durante dez dias consecutivos.
Começava às cinco horas da manhã e falava sem interrupção até às dez ou onze,
quase sempre no Cemitério dos Inocentes. Quando, ao terminar o seu décimo
sermão, anunciou que era o último porque não tinha permissão de pregar mais, grandes
e pequenos choraram tão comovida e amargamente como se estivessem a ver
enterrar os melhores amigos; e ele também. Pensando que ele ia pregar mais um
sermão no domingo, em S. Dinis, para lá se dirigiram no sábado os fiéis,
passando a noite ao ar livre para conseguir bons lugares.
Outro frade menor, António Fradin,
proibido de pregar pelo magistrado de Paris por ter feito críticas ao governo,
foi guardado dia e noite no convento da ordem por mulheres, postadas em volta
do edifício, armadas de machados e pedras.
Em todas as cidades onde o famoso dominicano Vicente Ferrer é esperado, o povo,
os magistrados, o baixo clero e mesmo os prelados e os bispos vão ao seu
encontro saudá-lo com cânticos. Ele viaja com numeroso e sempre crescente
cortejo de adeptos que, todas as tardes, depois do pôr do Sol, dão volta à cidade
em procissão, cantando e flagelando-se. Têm de nomear-se encarregados especiais
para tratar do alojamento e da alimentação destas multidões. Grande número de
frades de várias ordens religiosas acompanham-no a toda a parte para lhe
assistir na celebração da missa e na confissão dos fiéis. Vão também alguns notários
para lavrar no local as actas de reconciliação resultantes das pregações deste
santo. O seu púlpito tem de ser protegido por vedações contra a pressão da massa
de povo que quer beijar-lhe a mão ou as vestes.
Sempre que ele prega um sermão o trabalho
pára. Raramente deixa de comover os seus ouvintes até às lagrimas. Quando fala
do Dia do Juízo, do Inferno, da Paixão, tanto ele como o auditório choram tão
copiosamente que tem de suspender a prédica até que cessem os soluços. Os
próprios malfeitores se rojam aos seus pés, primeiro que quaisquer outros,
confessando os seus enormes pecados. Um dia, enquanto pregava, viu conduzir
dois condenados à morte, um homem e uma mulher, para o local da execução. Pediu
que adiassem o acto, mandou colocar os condenados junto do púlpito e continuou
o seu sermão falando acerca dos
pecados deles. Depois do sermão apenas se encontraram alguns ossos no lugar que
os condenados ocupavam e o povo ficou convencido de que as palavras do santo tinham,
ao mesmo tempo, conseguido a consumpção e a salvação dos dois.
Depois de Olivier Maillard ter pregado os
sermões da Quaresma em Orleães, os telhados das casas que rodeavam a praça
donde ele se dirigia ao povo ficaram tão danificados pelos espectadores que
para lá subiram que o pedreiro que os consertou apresentou uma conta de mais de
sessenta dias de trabalho. As diatribes dos pregadores contra a dissolução e a
luxúria produziam estados de excitação que se transformavam em actos. Muito
antes de Savonarola iniciar as queimas dos objectos de luxo e de prazer em
Florença, com irreparável perda para a arte, a prática de holocaustos desta
natureza era já corrente tanto em França como na Itália. Às intimações de um pregador
famoso, homens e mulheres apressaram-se a trazer cartas, dados e ornamentos
para serem queimados com grande pompa. A renúncia ao pecado da vaidade, por
este modo efectuada, tinha tomado uma forma definitiva e solene de manifestação
pública, de acordo com a tendência da época para inventar um estilo para todas
as coisas. Toda esta receptividade para as emoções, as lágrimas, os
arrebatamentos do espírito, deve ser lembrada se se quiser compreender
inteiramente como era tensa e violenta a vida daquele período. Um luto de
carácter público tinha também o aspecto de uma calamidade geral. No enterro de
Carlos VII o povo está completamente perturbado por ver o cortejo, constituído
por todos os dignitários da corte vestidos com o mais rigoroso luto que era doloroso
observar; e por causa da grande tristeza e aflição que eles mostravam pela
morte do seu senhor, muitas lágrimas se vertiam e lamentações se ouviam por
toda a cidade». In Johan Huizinga, O Declínio da Idade Média,
tradução de Augusto Abelaira,1960, Editorial Ulisseia, 1985, 1996, ISBN: 978-972-568-017-9.
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