«Em 26 de Abril de 1478, quinto domingo depois da Páscoa, a história do Renascimento
italiano, e provavelmente também a de toda a Europa, esteve a ponto de dar uma
virada. O altar-mor da catedral de Florença acolhia naquela manhã a brilhante e
turbulenta nobreza local, encabeçada pelo indiscutível homem forte da
República, Lourenço de Médici, chamado o Magnífico. No momento culminante da
missa, quando o padre elevava o cálice com o vinho consagrado, os conjurados
tiraram as adagas que ocultavam sob suas capas e se atiraram sobre a família do
mecenas. Esses factos,
conhecidos como A conjuração
dos Pazzi, marcaram durante gerações a memória dos florentinos por sua
natureza violentamente escabrosa. A sua lembrança passou ao imaginário popular
com o signo inconfundível das grandes convulsões colectivas, em meio a um
imenso clamor de Dies Irae… Vários artistas ilustres do Renascimento,
como Botticelli, Verrocchio e Leonardo da Vinci, registaram esses fatos em seus
quadros carregados de recônditas referências simbólicas. Mas nenhum deles
conseguiu se aproximar tanto da verdadeira índole do acontecido naquele domingo
sangrento quanto o pintor Pierpaolo Masoni».
A Conspiração contra os
Médicis
«Contar com um retrato falado do assassino é algo
prioritário em qualquer investigação policial, mas se o crime foi cometido há
cinco séculos, a coisa se complica. Uma pintura do Renascimento não pode ser
considerada exactamente uma prova pericial. Mesmo assim, pode nos dizer muito
sobre a vida e as circunstâncias que cercaram o artista. Não me refiro apenas
às mensagens do quadro enquanto obra de arte, mas a uma outra dimensão da
superfície pictórica, com as suas sucessivas camadas de pigmentos que contam a
história de uma determinada obra do mesmo modo como os círculos no tronco da
árvore nos falam de sua idade biológica. Às vezes a psicologia do pintor fica
registada em cada pincelada, ao alisar ou esfumar, e por vezes até em forma de
impressão digital. Segundo alguns cientistas, as pinturas poderiam encerrar o
código do DNA do artista, presente microscopicamente em vestígios de saliva ou
de sangue. Mas até o momento, e tendo em conta a precariedade de meios com que
costuma trabalhar uma historiadora da arte, será melhor não contar com essa
possibilidade. Cheguei a Florença com uma bolsa da Fundação Rucellai para
escrever a minha tese de doutoramento sobre o pintor Pierpaolo Masoni, conhecido como o Lupetto, um dos artistas mais
enigmáticos e promissores do Quattrocento, e que, por causa de um
acidente, ficou cego em 1478, quando
tinha apenas 33 anos. Felizmente, teve tempo de concluir algumas encomendas
importantes para a família Médici, como a polémica Madonna de Nievole, e além
disso deixou registo das suas reflexões numa série de manuscritos muito
valiosos para qualquer amante da arte. No entanto, desde o primeiro momento em
que comecei a imergir nesses textos, depositados numa prateleira do primeiro
andar do Archivio di Stato de Florença, minhas obsessões foram-se tornando mais
próprias de um detective do que de uma estudiosa do Renascimento.
No início da minha estada na cidade, senti uma profunda
decepção. Florença me pareceu uma cidade abandonada à própria sorte, com as
latas de lixo transbordando e uma balbúrdia de buzinas e sirenes que quebravam
o reflexo de seu passado renascentista. Mas, pouco a pouco, fui-me acostumando
àquela respiração de búfalo cansado. Aprendi a caminhar pelas ruas sem esbarrar
nas hordas de turistas que invadiam a toda hora as estreitas calçadas do centro
histórico. Dependendo do momento do dia, reinava um alarido humano de
diferentes níveis: executivos que saíam de casa cedo com uma maleta de trabalho
deixando no ar uma nuvem irrespirável de loção pós-barba, crianças a caminho da
escola com seus gorros e cachecóis da Benetton, funcionários estatais, frades,
japoneses que se retratavam sentados nos próprios joelhos do Holoferney de
Donatello, recém-casados beijando-se na ponte Vecchio, motocicletas que
iam saltando ruidosamente entre os pátios dos restaurantes, e centenas de
jovens de pele escura que, ao entardecer, vendiam braceletes e relógios a 6
euros na Piazza della Reppublica, batendo os pés no calçamento de pedra
para espantar o frio. Gente de passagem. Entre aquelas manadas de transeuntes
que toda manhã tomavam as ruas de assalto, eu era mais uma. Uma transeunte
bastante desorientada, isso sim, com uma bolsa da Fundação Rucellai em meu
poder, um contrato de aluguer para seis meses que a reitoria da Universidade de
Santiago de Compostela havia conseguido para mim, uma mala cheia de livros e
alguns assuntos pessoais que precisava esquecer. A camuflagem é a primeira táctica
de sobrevivência que alguém deve aprender para se adaptar a qualquer mundo cujo
código desconhece. Mas, quando a sensação de estranheza ficava muito
insuportável, eu tinha um recurso infalível para transformar a realidade de
acordo com o meu desejo. Enquanto esperava no ponto do 22 para me dirigir ao
Archivio ou enquanto tomava um cappuccino
no Café Rivoire, na Piazza della Signoria, me punha a olhar pela janela
e, sem me esforçar muito, em questão de segundos, o passado irrompia e o
fervedouro da Florença do século XV se abria diante de mim. Pela minha cabeça
iam desfilando cortesãos e capelães, notários, barbeiros, entalhadores e
mercadores, como se eu me encontrasse na filmagem de uma produção de época». In Susana Fortes, Quattrocento,
tradução de Maria Alzira Lemos, Pontas Literary, 2007, Planeta, Edições ASA,
2009, ISBN 978-989-230-488-5.
Cortesia de PLiterary/Planeta/Asa/JDACT