As cidades e o desejo. 2
«(…) A cidade aparece-nos como um todo em que nenhum desejo
se perde e de que nós fazemos parte, e como ela goza tudo de que nós não
gozamos, só nos resta habitar este desejo e satisfazer-nos com ele. Este poder,
que consideram ora maligno ora benigno, tem-no Anastásia, cidade enganadora: se
durante oito horas por dia trabalharmos como entalhadores de ágatas ónixes
crisoprásios, a nossa fadiga que dá forma ao desejo toma do desejo a sua forma,
e julgamos gozar por toda Anastásia enquanto afinal não passamos de seus
escravos.
As cidades e os sinais. 1
O homem caminha durante dias pelo meio de árvores e pedras.
Raramente o olho se detém sobre alguma coisa, e só quando a reconhece pelo
sinal de outra coisa: uma pegada na areia indica a passagem do tigre, um
pântano anuncia um veio de água, a flor do hibisco o fim do Inverno. Tudo o
resto é mudo e intercambiável; árvores e pedras são só o que são. Finalmente a
viagem conduz à cidade de Tamara. Entra-se nela por ruas pejadas de letreiros
que sobressaem das paredes. Os olhos não vêem coisas mas sim figuras de coisas
que significam outras coisas: a tenaz indica a casa do arranca-dentes, a
garrafa a taverna, a alabarda o corpo da guarda, a balança romana a ervanária.
Estátuas e escudos representam leões golfinhos torres estrelas: sinal de que qualquer
coisa, sabe-se lá o quê, tem por símbolo um leão ou golfinho ou torre ou
estrela. Outros sinais avisam do que num local é proibido, entrar no beco com
as carroças, urinar atrás do quiosque, pescar com cana do alto da ponte, e do
que é lícito, dar de beber às zebras, jogar à bola, queimar os cadáveres dos
parentes. Da porta dos templos vêem-se as estátuas dos deuses, representados
cada um com os seus atributos: a cornucópia, a clépsidra, a medusa, pelo que o
fiel pode reconhecê-los e dirigir-lhes as orações certas. Se um edifício não
tiver nenhum letreiro ou figura, a sua própria forma e o lugar que ocupa na
ordem da cidade bastam para indicar a sua função: o palácio real, a prisão, a
fundição da moeda, a escola de aritmética, o bordel. Até as mercadorias que os
vendedores põem em exposição nas bancas valem não por si próprias mas como
sinais de outras coisas: a fita bordada para a fronte quer dizer elegância, a
liteira dourada poder, os volumes de Averróis sapiência, a pulseira para o
tornozelo volúpia. O olhar percorre as ruas como páginas escritas: a cidade
diz tudo o que devemos pensar, faz-nos repetir o seu discurso, e enquanto julgamos
visitar Tamara limitamo-nos a registar os nomes com que ela se define a si
mesma e todas as suas partes. Como realmente é a cidade sob este denso
invólucro de sinais, o que ela contém ou oculta, o homem sai de Tamara sem
tê-lo sabido. Fora dela espraia-se a terra vazia até ao horizonte, abre-se o
céu por onde correm as nuvens. Na forma
que o acaso e o vento dão às nuvens o homem fica logo absorvido a reconhecer
figuras: um veleiro, uma mão, um elefante...
As cidades e a memoria. 4
Depois de se passar seis rios e três cadeias de montanhas surge
Zota, cidade que quem a viu uma vez nunca mais pode esquecer. Mas não por ela
deixar como outras cidades memoráveis uma imagem fora do comum nas recordações.
Zota tem a propriedade de ficar na memória ponto por ponto, na sucessão das
ruas, e das casas ao longo das ruas, e das portas e das janelas das casas,
embora não apresentando nelas belezas ou raridades particulares. O seu segredo
é o modo como a vista percorre figuras que se sucedem como numa partitura
musical em que não se pode mudar ou deslocar nenhuma nota. O homem que sabe de
cor como é Zora, nas noites em que não consegue dormir imagina que anda pelas
suas ruas e recorda a ordem em que se sucedem o relógio de cobre, o toldo às
riscas do barbeiro, o repuxo dos nove esguichos, a torre de vidro do astrónomo,
o quiosque do vendedor de melancias, a estátua do eremita e do leão, o banho
turco, o café da esquina, a travessa que dá para o porto. Esta cidade que nunca
se apaga da mente é como uma armação ou um reticulado em cujas casas cada um
pode dispor as coisas que lhe aprouver recordar: nomes de homens ilustres,
virtudes, números, classificações vegetais e minerais, datas de batalhas,
constelações, partes de um discurso. Entre todas as noções e todos os pontos
do itinerário poderá estabelecer um nexo de afinidades ou de contrastes que
sirva de mnemónica, de referência instantânea para a sua memória. E assim e
de maneira tal que os homens mais sábios do mundo são os que conhecem Zon de
cor. Mas foi inutilmente que parti em viagem para visitar a cidade: obrigada a
permanecer imóvel e igual a si própria para melhor ser recordada, Zora
estagnou, desfez-se e desapareceu. A Terra esqueceu-a». In Italo Calvino, As Cidades
Invisíveis, 1990, Editorial Teorema, Lisboa, 2003, ISBN 972-695-374-X.
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