A
notícia
«(…)
A voz regressou-lhe, já mansa: Pense assim, mulher: não há cova para um filho. Não quero ouvir, vou
sair. Sair? Vou buscar o que resta da nossa filha por aí pelo mato… Não vai.
Daqui de casa você não sai. A mim ninguém me vai impedir. Sairia de
casa, sim, andaria por onde já não há caminhos de gente, os seus pés
sangrariam, queimar-se-iam os olhos de encontro ao Sol, mas iria buscar o que
restava de Silência, a sua eterna menina. Barrando-lhe a passagem, o marido
ameaçou: Vou
atá-la com uma corda, como se faz com os bichos. Pois me amarre. Há muito que
sou um bicho. Há muito que você dorme com um bicho na sua cama… Era
a pedra sobre o assunto: Hanifa enroscou os braços nas pernas, em silêncio,
como se quisesse render-se ao sono. Vai dormir no chão?, inquiriu Genito. Ela estendeu o corpo no
chão, a cabeça assente na pedra. A sua intenção era escutar as entranhas do
mundo. As mulheres de Kulumani sabem segredos. Sabem, por exemplo, que dentro
do ventre materno os bebés, a um dado
momento, mudam de posição. Em todo o mundo, eles rodam sobre si próprios,
obedecendo a uma única e telúrica voz. Acontece o mesmo com os mortos: numa
mesma noite, e só pode suceder nessa noite, eles recebem ordem para se
revirarem no ventre da terra. É então que, à superfície das campas, emergem luzes,
um revolutear de prateadas poeiras. Quem dorme com o ouvido de encontro ao chão
escuta essa circunvolução dos defuntos. Por essa razão, que Genito desconhecia,
Hanifa recusou leito e travesseiro.
Estendida
no solo, ficou escutando a terra. Não tardaria que a filha se fizesse sentir.
Quem sabe até as gémeas Uminha e Igualita, as antigas falecidas, lhe
entregassem recados do outro lado do mundo? O marido não se deitou: sabia que o
esperava uma longa noite. A lembrança do corpo dilacerado da filha lhe afugentaria
o sono. O rugido do leão ecoaria dentro de si, rasgando-lhe as horas. Ficou um
tempo na varanda a perscrutar o escuro. Talvez essa quietude lhe trouxesse
repouso. Mas o silêncio é um ovo às avessas: a casca é dos outros, mas quem se
quebra somos nós. Uma dúvida o amargurava: como acontecera aquela tragédia? A
filha teria saído de casa a meio da noite? E se assim acontecera, teria ela a
intenção de pôr cobro à vida? Ou, ao
inverso, o leão invadira o espaço caseiro, em jeito mais de ladrão do que de
fera? De repente, o mundo inteiro se estilhaçou: furtivos passos riscaram o
sossego do mato. O coração de Genito lhe cresceu mais do que o peito. Estava
acontecendo aquilo que sempre sucede: os leões vinham comer os restos do dia
anterior. Inesperadamente, como se ficasse possesso, o homem desatou aos
berros, enquanto corria em círculos: Sei que estão aí, filhos do demónio! Mostrem-se,
quero ver-vos sair do mato, vocês são vantumi va vanu!
Da
janela o vi nesse agitado delírio, reclamando contra os leões-pessoas, os vantumi va vanu. Inesperadamente,
tombou desamparado como se lhe tivessem quebrado os joelhos. Ergueu o rosto
lentamente e viu que escuras asas de morcego o abraçavam. Não se escutava um
ruído, nem folha nem asa crepitavam por cima da sua cabeça. Genito Mpepe era
pisteiro, sabia dos imperceptíveis sinais da savana. Muitas vezes ele me dissera:
só os humanos sabem do silêncio. Para os demais bichos, o mundo nunca está
calado e até o crescer das ervas e o desabrochar das pétalas fazem um enorme
barulho. No mato, os bichos vivem de ouvido. Era o que meu pai, naquele
momento, invejava: ser um bicho. E, longe dos humanos, regressar à sua toca, adormecer sem pena nem culpa. Eu sei que estão aí! Desta vez,
as suas palavras já não carregavam raiva. Apenas a rouquidão lhe fazia murchar
a voz. Repetindo os impropérios, retornou a casa para se refugiar no quarto. A
mulher permanecia enroscada, estendida no chão, tal como a havia deixado.
Quando lhe ajeitou a manta, Hanifa Assulua, estremunhada, apertou com veemência
o corpo do marido e exclamou: Vamos fazer amor! Agora? Sim. Agora! Estás muito confusa, Hanifa. Não
sabes o que estás dizer. Recusa-me, marido? Não quer fazer um amorzinho comigo?
Sabes que não podemos. Estamos de luto, a aldeia vai ficar suja. É isso que eu
quero: sujar a aldeia, sujar o mundo.
Hanifa, escuta bem: o tempo vai
passar, a gente vai esquecer. As pessoas esquecem até que estão vivas. Há muito
que eu não vivo. Agora, já deixei de ser pessoa. Meu pai olhou-a, desconhecendo-a. A mulher nunca falara assim. Aliás, ela quase não falava.
Sempre fora contida, guardada em sombra. Depois de morrerem as gémeas, ela
deixou de pronunciar palavra. De tal modo que o marido, de vez em quando, lhe
perguntava: Estás
viva, Hanifa Assulua?
Não era, porém, a fala que era pouca. A vida,
para ela, tornara-se um idioma estrangeiro. Mais uma vez, a esposa se preparava
para essa ausência, pensou Genito, sem reparar que, no escuro, Hanifa se estava
despindo. Já nua, ela o abraçou por trás e Genito Mpepe deixou-se sucumbir
perante aquele aconchego de serpente. Parecia rendido quando, de repente, sacudiu a
mulher e se retirou com passo estugado para o pátio exterior. E logo
desapareceu no escuro. No côncavo do quarto, minha mãe se entregou a ousadas
carícias como se o seu homem realmente lhe comparecesse. Desta feita, ela
comandava, galopando na sua própria garupa, dançando sobre o fogo. Suava e gemia: Não
pares,
Genito! Não pares! Foi então que sentiu o cheiro do suor. Ácido e intenso, como
o dos bichos. Depois, escutou o ronco. A minha mãe ocorreu, então, que por cima
dela não estava o seu homem, mas um bicho dos matos, sequioso de seu sangue.
Durante o acto amoroso, Genito Mpepe se convertera numa fera que literalmente a devorava. Dissolvida na
avidez do outro, ela permanecia paralisada, à mercê dos seus felinos apetites». In Mia Couto, A Confissão da Leoa,
Companhia das Letras, 2012, ISBN 978-853-592-163-2.
Cortesia
da CdasLetras/JDACT