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Os dois puseram-se a trabalhar na frescura da noite. Era quando o faziam
melhor. Às vezes conversavam em árabe, outras em inglês; para ambos, as duas
línguas eram uma só. Com menos frequência usavam o francês, que tinham como
terceira língua. Tanto um como outro haviam sido educados em universidades da
Inglaterra e dos Estados Unidos, tão distantes deste próprio Egipto que lhes
pertencia. Royan gostava da expressão deste próprio Egipto que Taita
usava com frequência nos seus papiros. Ela tinha tantas afinidades com o velho
egípcio! Afinal, era a sua descendente directa. Era cristã copta, não da
linhagem árabe que há tão pouco tempo conquistara o Egipto, menos de catorze
séculos. Os árabes eram recém-chegados a esse próprio Egipto que lhe pertencia,
ao passo que o seu sangue retrocedia ao tempo dos faraós e das Grandes
Pirâmides. Às dez horas Royan fez café, aquecendo-o num fogão a carvão que Alia
acendera antes de voltar para a sua casa no vilarejo. Eles beberam a doce e
forte infusão em xícaras grossas, cheias pela metade de pó grosso. Beberam e
conversaram como bons amigos. Para Royan, era esse o relacionamento deles: bons
amigos. Conhecera Duraid quando voltara da Inglaterra com o seu doutoramento em
arqueologia e conseguira um cargo no Departamento de Antiguidades, que ele
dirigia. Era a sua assistente quando ele abrira a tumba no Vale dos Nobres, o
túmulo da rainha Lostris, que datava de cerca de 1780 a.C.. Compartilharam
a mesma decepção ao descobrir que o túmulo fora roubado em tempos distantes e
todos os seus tesouros tinham sido levados. O que restara eram os maravilhosos
afrescos que revestiam as paredes e os tectos da tumba. Royan trabalhava na
parede atrás dos plintos sobre os quais outrora estivera o sarcófago,
fotografando os afrescos, quando uma parte do reboco caiu e revelou um nicho
que escondia dez jarros de alabastro. Cada um deles continha rolos de papiro.
Todos tinham sido escritos e colocados ali por Taita, o escravo da rainha. Desde
então, a vida de ambos, a de Duraid e a sua, passou a girar em torno desses
fragmentos de papiros. Embora um pouco danificados e deteriorados, na sua maior
parte haviam sobrevivido notavelmente intactos por quase 4 000 anos.
Que
história fascinante eles continham! Uma nação atacada por um inimigo superior,
armados com cavalos e carros de guerra ainda desconhecidos dos egípcios da
época. O povo do Nilo, massacrado pelas hordas dos hicsos, foi obrigado
a fugir. Conduzido pela rainha Lostris, seguiu pelo grande rio em direcção ao
sul, quase até à nascente, nas cruéis montanhas da Etiópia. Foi nessas
montanhas proibidas que Lostris enterrou o corpo mumificado de seu marido, o
Faraó Mamose, morto numa batalha contra os hicsos. Muito tempo depois a rainha
Lostris reconduziu o seu povo para o norte, a esse próprio Egipto. Armados
então com carros de guerra e cavalos, forjados pela estepe africana em bravos
guerreiros, os egípcios lançaram-se pelas cataratas do grande rio e novamente
atacaram o invasor hicso até triunfar, arrancando de suas mãos a dupla coroa
do Baixo e Alto Egipto. Era uma história que tocava as fibras de seu ser, e
fascinava-a desvendar cada hieróglifo que o velho escravo havia desenhado nos
papiros. Há muitos anos trabalhavam durante a noite na vila do oásis, após
terem concluído a rotina diária no Museu do Cairo, e já haviam decifrado os dez
pergaminhos, todos, menos o sétimo. Esse era o grande enigma, aquele que o
autor tinha ocultado há tanto tempo em níveis iconográficos e alusões obscuras
e imperscrutáveis. Alguns dos símbolos usados jamais haviam aparecido nos
milhares de textos estudados na sua vida conjunta de trabalho. Era óbvio para
ambos que Taita não pretendia que os papiros fossem lidos por mais ninguém além
de sua amada rainha. Era o seu último presente para ela, para que o levasse
para além-túmulo. Exigira dos dois arqueólogos toda a habilidade, toda a
imaginação e engenhosidade, mas ao menos eles estavam aproximando-se da
conclusão da tarefa. Havia ainda muitas falhas na tradução, e trechos cujo
verdadeiro significado eles não sabiam se tinham captado ou não, mas o
esqueleto do manuscrito estava revelado de tal forma que era possível discernir
o perfil da criatura ali representada.
Duraid
bebeu um gole de café e balançou a cabeça, como sempre fazia. Isso me assusta, disse. A responsabilidade... O que fazer com
esse conhecimento que recolhemos? Se ele cair em mãos erradas... Outro gole, e
ele suspirou. Mesmo se o entregarmos à pessoa certa, ela iria acreditar que
este material tem quase quatro mil anos? Por que temos de mostrá-lo a alguém?
Royan beirava a exasperação. Por que nós dois não fazemos o que deve ser feito?
Nesses momentos a diferença entre eles ficava mais clara: ele era a própria
cautela da velhice; ela, a impetuosidade da juventude. Não entendes. Ela não
gostava disso, ser tratada como os árabes tratam as suas mulheres, num mundo
totalmente masculino. Conhecia outro mundo onde elas exigiam e obtinham o
direito de ser tratadas como iguais. Era uma criatura presa entre esses dois
mundos, o ocidental e o árabe. A mãe de Royan era inglesa, e trabalhara na embaixada
britânica do Cairo nos tempos conturbados após a II Guerra Mundial. Conhecera e
se casara com ele, o pai de Royan, um jovem oficial egípcio do staff do coronel Nasser. Uma união
improvável, que só persistiu até a adolescência de Royan». In Wilbur Smith, O Sétimo Papiro, 1995, Editora Best
Seller, 2004, ISBN 978-853-321-159-9.
Cortesia
de EBSeller/JDACT